84% dos casos de crimes raciais são registrados em SP como injúria, e não como racismo, aponta pesquisa

Luta contra o racismo no asfalto da Rua Pereira Nunes, em Vila Isabel, Zona Norte do RJ — Foto: Marcos Serra Lima/g1 1 de 2 Luta contra o racismo no asfalto da Rua Pereira Nunes, em Vila Isabel, Zona Norte do RJ — Foto: Marcos Serra Lima/g1

Luta contra o racismo no asfalto da Rua Pereira Nunes, em Vila Isabel, Zona Norte do RJ — Foto: Marcos Serra Lima/g1

"O que vocês fazem com esse preto fedido? O que vocês fazem com esse macaco?", perguntou um homem branco para os amigos do psicólogo Rômulo Mafra, de 38 anos, na saída de uma boate em Balsas, interior do Maranhão, no último sábado (14).

Não é a primeira vez que ele sofre um ataque racista, mas agora seu agressor, o agrônomo Luis Guilherme de Freitas, acabou preso em flagrante e vai responder por injúria racial equiparada ao crime de racismo, que é inafiançável e imprescritível, e tem uma pena mais severa, de 2 a 5 anos de prisão. A mudança se deve à lei sancionada pelo presidente Lula (PT) na última quarta-feira (11).

Até então, os casos tipificados como racismo eram a exceção, e a maioria dos réus acabavam absolvidos, de acordo com uma pesquisa do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Em São Paulo, na Decradi (delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intolerância), 84% das denúncias de crimes do tipo são registradas como injúria racial, e não como racismo. Em oito anos, foram registrados 1.001 crimes de injúria racial e só 191 de racismo pelos delegados.

Quando o processo chega à segunda instância da Justiça, um quarto dos réus são absolvidos, segundo os pesquisadores, que analisaram 831 processos de crimes raciais de sete estados (BA, GO, PA, PR, RJ, SP e SE).

Os insultos mais frequentes nos processos equiparam pessoas negras a animais - as palavras que mais apareceram são "macaco", "preto", "nego", "fedido", "safado" e "sujo".

O estudo mostrou ainda que as delegacias costumam filtrar os casos que chegam, registrando apenas aqueles em que as vítimas apresentam evidências - o que não deveria ser a praxe, já que é responsabilidade da Polícia Civil investigar os fatos.

Provar um ataque racista nem sempre é tarefa fácil, porque muitas acusações acontecem em lugares que não são filmados ou não há nenhuma testemunha, impedindo a instauração dos inquéritos.

Para a pesquisadora da FGV, Yasmin Rodrigues, isso mostra que, na prática, é muito difícil alguém ser condenado por crimes raciais no Brasil.

Agora, com o novo decreto, ela espera que haja punições mais severas. "Não é só a pena que aumenta, mas o crime se torna imprescritível, uma mudança importante, já que vários processos prescreveram pela lentidão da Justiça. Também faz com que os operadores do direito tenham mais noção de que essas condutas, a injúria racial e o racismo, estão equiparadas porque elas são a mesma coisa, e se debrucem sobre o tema”, afirmou Rodrigues.

Os pesquisadores verificaram, por outro lado, que no campo cível há um número expressivo de condenações por danos morais. Nessa seara, a vítima ganhou a causa em 62% dos casos (ou 383 dos 618 analisados).

No entanto, o principal argumento utilizado pelos juízes para conceder a indenização por danos morais é o de dano à honra, tese que o estudo critica.

"A narrativa que permeia as decisões cíveis concebem os casos de discriminação racial como fenômenos isolados nas relações sociais, um dano estritamente ligado à honra do indivíduo, ou seja, um ato lesivo à esfera do direito de personalidade e não como um problema de caráter estrutural. Por isso, não há reconhecimento do racismo", afirma a pesquisa.

O psicólogo Rômulo Mafra já tinha prestado queixa outras duas vezes por episódios bem semelhantes.

“Também me chamaram de macaco, falaram do meu cabelo, do meu dreadlocks. E, de novo, eu decidi não deixar passar. Apesar de ser algo que nos machuca, a gente só vai mudar quando essas pessoas forem responsabilizadas. Espero que a equiparação dos crimes amedronte esses criminosos”, afirma Rômulo Mafra.

O agressor do maranhense ficou preso por dois dias e foi liberado pela Justiça para responder o processo em liberdade nesta segunda-feira (16), após audiência de custódia.

84% dos crimes raciais em SP são registrados como injúria e não como racismo — Foto: Arte/g1 2 de 2 84% dos crimes raciais em SP são registrados como injúria e não como racismo — Foto: Arte/g1

84% dos crimes raciais em SP são registrados como injúria e não como racismo — Foto: Arte/g1

Entre os 1.192 casos de injúria racial e racismo registrados no Decradi, em São Paulo, os principais autores foram as mulheres brancas (316), seguido pelos homens brancos (277). A população negra, entre homens e mulheres (205), é menos do que a metade da soma de autores do primeiro grupo racial (593).

Já quando falamos das vítimas, é o exato oposto: as mulheres negras são as que mais sofrem ofensas (339), seguidas pelos homens negros (301). O número total de pessoas negras vítimas (640) é quase três vezes o mesmo total para as pessoas brancas (251).

A maioria dos casos acontece dentro de residências, o que explica a dificuldade por um conjunto probatório suficiente para a instauração de inquérito e a continuidade judicial dessas denúncias.

Em seguida aparecem casos em vias públicas, seguido por comércio e por condomínio residencial -esse último, apesar de aparecer separado no sistema policial, indica que há um número ainda maior de casos em espaços de moradia.

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