Boom de rainhas de bateria de comunidades no Grupo Especial marca início de nova era no carnaval do Rio
Rainha da Mangueira há 10 anos, Evelyn Bastos, nascida e criada na comunidade, celebra a ascensão dos talentos das favelas: moda das celebridades passou — Foto: Marcos Serra Lima/g1
No carnaval de 2023, as comunidades ganham força e destaque nas figuras de suas rainhas de bateria. Metade das 12 escolas de samba do Grupo Especial terão sambistas de raiz, forjadas em suas quadras, reinando à frente dos ritmistas.
Para a veterana Evelyn Bastos, há dez anos rainha da Mangueira, as escolas estão mais conscientes de seu papel social e na História: "a moda passou, e acabou o tempo das celebridades à frente das baterias.
Desde 1987, tendo como rainhas somente celebridades, como a modelo Luiza Brunet, a atriz Cris Vianna e a cantora Iza, a Imperatriz Leopoldinense, pela primeira vez, vai se curvar à universitária 💥️Maria Mariá, de 20 anos, moradora do Complexo do Alemão, em Ramos, na Zona Norte. Ela também será a mais jovem soberana da escola a brilhar à frente da Swing da Leopoldina.
"Não sei se é uma tendência, mas é muito bom ver que as escolas estão olhando para suas comunidades, para seus sambistas, para aqueles que realmente são apaixonados, acompanham, se dedicam, se emocionam com a escola", diz Maria, que era passista da escola.
Além de desejar que seu reinado se estenda por muitos carnavais, Maria, que estuda comunicação social, quer ajudar nos trabalhos, oficinas e projetos sociais da Imperatriz.
"Quero seguir como rainha enquanto puder e inspirar e trazer mais gente do Complexo do Alemão e do entorno para as atividades da escola. O samba educa, abre portas e faz a gente crescer. A escola de samba dá a oportunidade para as comunidades desenvolverem suas potencialidades. É diversão também, mas o trabalho é coisa séria", disse a jovem rainha da escola de Ramos.
A nova rainha da Paraíso do Tuiuti, a dançarina 💥️Mayara Lima, que desde os 14 anos desfilava na ala de passistas da escola, quer ser uma inspiração e esperança para outras meninas da comunidade. Ela despontou no carnaval passado, quando um vídeo em que aparece ensaiando junto com a bateria viralizou.
A graça e o ritmo de Mayara, que até então era princesa, a alçaram ao posto de rainha de bateria aclamada pelos "súditos".
"Estamos vivendo uma era de ouro no carnaval com diversas rainhas de bateria oriundas da comunidade. Então, quando estou em um ensaio e vejo uma criança sambando e se inspirando nos meus passos, faço questão de puxar ela para perto e sambar comigo. É alimentar o sonho de um dia a gente ser uma realeza, de reforçar que nossas antepassadas também foram rainhas. Até me emociono porque é muito mais do que estar na frente da bateria", disse a soberana da Tuiuti.
É com naturalidade, que a mais jovem rainha deste carnaval, vai assumir seu posto à frente dos ritmistas. A estudante Lorena Raíssa, de 15 anos, está substituindo Raíssa Oliveira, que reinou por 20 anos na Beija-Flor de Nilópolis. A escola sempre privilegiou integrantes da comunidade.
"Vou continuar um legado de mulheres pretas, eternamente guerreiras, da comunidade. Quero crescer igual a elas, que são o verdadeiro sangue da escola. A Beija-Flor tem essa essência de família. Então, é a valorização de quem dá o sangue, trabalha, vive e é apaixonado pela escola", disse Lorena.
A jovem que vem de uma família de sambistas da Beija-Flor - irmãos ritmistas, irmãs passistas, mãe professora dos projetos sociais da escola - diz que quer servir de inspiração para outras meninas e conquistar muitos outros postos na escola.
"Quero mostrar que não precisa ser famosa ou ter corpão para ser rainha. É preciso sim lutar por seus sonhos. Ser rainha era meu sonho desde criança, queria ser como a Raíssa, a Evelyn, a Bianca. Comecei na ala das crianças e quero chegar à Velha Guarda, tocar tamborim como a (musa) Neide Tamborim, participar de projetos do Instituto Beija-Flor", disse Lorena, que ainda não sabe se estuda medicina ou dança.
Se valorizar as integrantes da comunidade é uma tendência que vem ganhando força no carnaval carioca, a rainha Giovana Angélica, da Mocidade Independente de Padre Miguel, não sabe dizer. Mas acha esse movimento de valorização do sambista da escola muito positivo.
"Na verdade, não acho que seja uma tendência. É um efeito natural, que essas meninas têm de trazer a sua essência, essa bagagem essencial de cada comunidade para a escola, para a arte do carnaval. Isso é de uma magnitude, de uma maestria. Fico muito feliz que cada vez mais estejam aparecendo meninas, mais pessoas com tanta capacidade e gabarito para executar esse excelente trabalho", disse Giovana.
Rainha da Mocidade desde 2023, Giovana Angélica, de 37 anos, foi criada na Vila Vintém, em Padre Miguel, na Zona Oeste. Formada em turismo, ela mora nos Estados Unidos, onde foi estudar. Mas não deixa de acompanhar a escola pelas redes sociais. E sempre que possível, retorna ao Brasil para os ensaios.
2 de 2 Rainha da Mocidade Independente Padre Miguel desde 2023, Giovana Angélica, nascida na Vila Vintém, fica feliz com movimento de valorização dos talentos da comunidade — Foto: Alexandre Durão/G1Rainha da Mocidade Independente Padre Miguel desde 2023, Giovana Angélica, nascida na Vila Vintém, fica feliz com movimento de valorização dos talentos da comunidade — Foto: Alexandre Durão/G1
Do alto de sua experiência, Evelyn Bastos, de 29 anos, que neste carnaval celebra dez anos de reinado à frente da Tem Que Respeitar Meu Tamborim, da Estação Primeira de Mangueira, é enfática:
"Na minha opinião, era uma vez a era das celebridades à frente das baterias Saiu de moda, não passa mais. A ideia da magnitude de uma Luma de Oliveira, do carisma inexplicável de uma Sabrina Sato, o envolvimento de uma Viviane Araújo, não tem mais. Elas são lindas, maravilhosas, atemporais. Para mim, nem daqui a cem anos vai aparecer alguém como Sabrina Sato. E a gente precisa muito olhar para os talentos das favelas", afirmou Evelyn.
Filha de Valéria Bastos, uma ex-rainha da comunidade, Evelyn diz que as escolas estão despertando para suas comunidades, valorizando a vontade, a garra, o suor derramado, o pé machucado para poder sambar bem, e mostrar a riqueza da ancestralidade do samba.
Segundo ela, as comunidades têm história, estrutura e talentos para mostrar ao mundo.
"Ser rainha não é só sambar na frente da bateria, é representar a sua escola. Ter uma rainha da comunidade é a maior prova de que a escola acredita na sua gente, no seu trabalho, no seu chão, na força dos antepassados. É acreditar que a gente pode criar artistas dentro das favelas para mostrar ao mundo", disse a sambista, que desde o ano passado acumula também o posto de presidente da escola mirim Mangueira do Amanhã.
Ocupar um lugar de destaque à frente dos ritmistas não conta pontos para o desfile da escola, mas nem por isso, a responsabilidade da rainha de bateria é pequena, como atesta a "veterana" Bianca Monteiro, de 34 anos, há sete anos soberana da Portela.
"Quando a escola escolhe alguém da comunidade, ela está abrindo espaço para uma sambista, dando importância às suas raízes. Antes, as rainhas eram atrizes e modelos. Hoje, elas têm um trabalho social, são porta-vozes da escola. No início era só glamour, depois passou a ser a representação da história da escola", disse Bianca.
Segundo Bianca, antes se acreditava que as atrizes e modelos atraíam a atenção da mídia para a escola. Mas esse conceito mudou.
"Hoje, as rainhas e musas levam para mídia a história da escola, os trabalhos sociais, a pesquisa, a cultura e a consciência da ancestralidade. Para ser rainha é preciso entender o que é a escola, entender as bandeiras que ela defende e representá-las. Costumo dizer que como rainha sou o Exu da Portela, a mensageira que leva para a avenida a síntese do que é aquela escola de samba, suas raízes. Por isso, é um posto tão importante. Não é só samba no pé, é envolvimento, ancestralidade e paixão pela escola", afirmou Bianca.
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