As falhas que podem ter levado ao rombo bilionário na Americanas
A crise da Americanas levantou dúvidas sobre os mecanismos de controle e contabilidade utilizados pela gigante do varejo brasileira. No último dia 11 de janeiro, o então CEO Sérgio Rial anunciou a investidores inconsistências nos balanços da empresa que, segundo ele, chegavam a R$ 20 bilhões. Em meio ao escândalo, Rial pediu demissão apenas nove dias depois de assumir o cargo. O caso teve o efeito de um terremoto no mercado financeiro, com as ações da varejista caindo cerca de 80% no dia seguinte ao anúncio do rombo.
As dívidas, que poucos dias depois atingiram a ordem dos R$ 43 bilhões, não haviam sido lançadas nos resultados financeiros da Americanas, ou seja, estavam "escondidas".
Segundo Rial, o prejuízo veio, em grande parte, de operações de "risco sacado", ou forfait, em que são utilizados empréstimos bancários para o pagamento de fornecedores. Esses valores tampouco foram identificados pela auditoria, feita pela consultoria multinacional PwC.
Na semana passada, a Americanas teve o pedido de recuperação judicial atendido pela 4ª Vara Empresarial do Rio. Fundada em 1929, em Niterói (RJ), e tendo como sócios majoritários, desde 1982, o grupo 3G Capital, dos bilionários Jorge Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira, a varejista tem atualmente mais de 3.600 lojas físicas e cerca de 40 mil funcionários. Só de credores, são mais de 16 mil.
A DW Brasil conversou com especialistas em finanças e enumerou algumas falhas que podem ter levado ao colossal rombo nas contas da gigante do varejo nacional.
O chamado "risco sacado", ou forfait, é uma forma de antecipar os pagamentos aos fornecedores, utilizada no ramo do varejo, que normalmente trabalha com parcelamentos e pagamentos em crédito aos clientes, em longos prazos.
Como os fornecedores exigem pagamentos dos produtos em um prazo apertado, a revendedora recorre a empréstimos de bancos para quitar esses valores. Assim, o credor da varejista passa a ser a instituição financeira que fez o pagamento aos fornecedores.
No entanto, o que pode ter acontecido no caso da Americanas é esse passivo com os bancos não ser lançado como dívidas financeiras, mas, em vez disso, como dívidas com fornecedores, o que não aparece nos resultados enviados ao mercado pelas empresas de capital aberto, como a varejista.
Com isso, os juros do empréstimo com os bancos podem não ter sido indicados como aumento de dívida, mas como despesa, explica o professor de contabilidade e finanças do Insper Eric Barreto. "Num primeiro momento, isso não muda o tamanho da dívida, porque é o valor presente. À medida que passa o tempo, ela deveria contabilizar o juros desse passivo, cuja contrapartida seria um aumento da dívida", destaca.
Segundo Barreto, as normas sobre o "risco sacado" são recentes. "Esse produto era vendido pelas instituições financeiras até com esse apelo, de que não aparecia na dívida", aponta.
O especialista acrescenta que, a partir de 2016, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) começou a alertar sobre os riscos dessa prática com circulares enviadas ao mercado. "Para a CVM colocar isso, ela já tinha percebido o problema em algumas empresas", diz.
De acordo com David Massara, especialista em direito societário e sócio da Gotlib Massara Rocha Advogados, a divulgação de resultados financeiros transparentes é essencial para um bom funcionamento do mercado financeiro. "Todo o mercado tem que ter acesso às mesmas informações para que todos possam tomar decisões de investimento, de comprar e vender, de uma maneira justa. Se a empresa divulga uma informação falsa ou inconsistente, ela está prejudicando os investidores", afirma.
Professor de economia da FGV, Joelson Sampaio diz que a prática do "risco sacado" deve entrar no radar do mercado com mais ênfase a partir do episódio da Americanas. "Deve ser demandado mais rigor em relação à contabilização e a como é informado ao mercado", prevê.
Uma das big four da auditoria independente, a inglesa PricewaterhouseCooper, conhecida como PwC, é responsável por verificar os balanços da Americanas desde o fim de 2023, após a saída da KPMG, que também está entre as quatro maiores do ramo no mundo.
Nos últimos resultados divulgados pela varejista, a PwC não encontrou inconsistências ou ressalvas, nem levantou dúvidas sobre os procedimentos de "risco sacado". Após a divulgação do rombo da Americanas, o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) instaurou um processo para investigar a conduta da auditoria independente.
A questão, segundo o advogado societário David Massara, é parte de uma discussão sobre o próprio papel das auditorias serem realmente "independentes", já que são pagas pela própria auditada. Além disso, ele diz que outro ponto é se a dimensão e volume dos negócios, que atualmente é muito grande, pode ser rastreada por essas empresas de controle.
"O que temos visto ao longo de duas décadas é uma sequência de problemas em empresas de capital aberto que essas empresas de auditoria não conseguem identificar e nos quais, de alguma forma, acabam se envolvendo. Essa discussão de novo vai voltar: a auditoria eficiente é realmente eficiente, esse modelo é falho e precisa ser corrigido?", questiona Massara, que é professor licenciado da Faculdade de Direito Milton Campos.
Massara lembra o caso da Enron, companhia de energia americana que faliu no início dos anos 2000, após ter escondido dívidas de 25 bilhões de dólares por dois anos. O escândalo envolveu a auditoria Arthur Andersen, uma das maiores do mundo, que fazia parte das então big five.
Barreto, do Insper, explica que as auditorias costumam se basear em estatísticas, sem revisar todos os processos, mas avaliando amostras e, a partir delas, analisando o quadro geral. "O tipo de procedimento que uma auditoria faz para certificar que a empresa está demonstrando todos os passivos é um teste de subavaliação", diz o professor de finanças.
Os auditores supostamente independentes entram, então, em contato com as instituições financeiras que tiveram relacionamento com as auditadas, confirmando saldos e aplicações. "Na investigação, a PwC vai ter que se defender e mostrar o que os bancos responderam para ela quando ela perguntou sobre operações de dívida ou de 'risco sacado'. Pode ser que a informação não tenha chegado a partir das instituições financeiras", ressalta Barreto.
É aí que entra outro ponto importante do processo, principalmente no caso do "risco sacado". Se foram os bancos que fizeram a operação junto aos fornecedores, eles deveriam, a princípio, ter alertado os auditores sobre os valores.
Entre os maiores credores das Americanas estão os bancos Santander (R$ 3,7 bi), Itaú (R$ 3,4 bi), Safra (R$ 2,5 bi) e BTG Pactual (R$ 1,9 bi). O BTG, inclusive, travou uma batalha pública, em recurso enviado à Justiça contra a varejista, chamando o escândalo de "fraude" e dizendo que os acionistas majoritários do 3G Capital foram "pegos com a mão no caixa".
Para Barreto, o "risco sacado" deveria ter sido informado pelos bancos justamente no momento em que os auditores entraram em contato para confirmar os números da dívida da Americanas. "O auditor, na defesa dele, vai ter que comprovar que fez esse processo. E acho que se salva se a instituição não respondeu que tinha essa informação de risco sacado. É uma possibilidade", sublinha o professor.
"Os credores sabiam que estavam fazendo 'risco'", diz Massara. "Essas instituições financeiras têm bilhões de reais emprestados para uma empresa. Não deveria ter havido uma diligência melhor? É uma bandeira que pode ser levantada", aponta o advogado.
A principal questão do caso, no entanto, continua sendo como uma empresa de capital aberto do tamanho da Americanas conseguiu esconder, por tanto tempo, o rombo bilionário dos próprios diretores e executivos.
No último fim de semana, os principais sócios da empresa, os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira – três dos quatro mais ricos do Brasil – se pronunciaram, em nota. "Assim como todos os demais acionistas, credores, clientes e empregados da companhia, acreditávamos firmemente que tudo estava absolutamente correto", disseram.
Para o especialista societário David Massara, porém, a divulgação, na semana passada, de que membros da diretoria da empresa venderam mais de R$ 200 mi em ações no fim de 2022 levanta suspeitas.
"Se o mercado via potencial de mais valorização, e os diretores, que têm mais informação que todo mundo, vendem, é sinal que eles não viam o mesmo potencial. Isso pode ser um indício de que algo errado podia estar acontecendo", diz ele, acrescentando que, se comprovada a tese, os diretores podem ser culpados por uso de informações privilegiadas, o chamado insider trading.
Nas empresas de capital aberto, os membros do conselho precisam aprovar as demonstrações contábeis. Com isso, também podem ser responsabilizados, explica Eric Barreto, do Insper. "A assinatura não é pro-forma", explica, sublinhando que os controladores de uma empresa têm acesso a todas informações necessárias.
Segundo o professor da FGV Joelson Sampaio, mesmo assim, o impacto no grupo 3G Capital deve ser pequeno, pelo menos a priori. "Isso pode mudar se ficar comprovado algum tipo de ação mais estratégica por parte do grupo", avalia.
O processo de recuperação judicial é utilizado para uma empresa garantir que, mesmo em situação complicada, como no caso da Americanas, compromissos sejam honrados. Alguns dos principais são a manutenção dos empregos dos trabalhadores e o pagamento de fornecedores, por exemplo. Após os 60 dias do início do processo, um plano de reestruturação é apresentado. Ele deve ser aprovado por ao menos metade dos credores.
Pelo menos num primeiro momento, isso deve garantir que os cerca de 40 mil funcionários da companhia continuem recebendo seus salários. No entanto, é muito provável que haja demissões durante o processo – e sindicatos já buscam negociação com a varejista.
"O dispositivo de recuperação judicial é para adequar a dívida a um novo tamanho de empresa. Se a Americanas vai ter que ajustar o tamanho dela, é muito provável que tenha um novo tamanho de funcionários. É uma consequência", diz Barreto, do Insper.
Mas os efeitos não ficam por aí. "Do ponto de vista financeiro, a empresa já não vai ter mais acesso ao crédito. Ninguém vai emprestar para ela. Ela está brigando com o sistema financeiro, por isso a recuperação judicial", diz Massara. Ele afirma que pode haver dificuldades com fornecedores, que não vão querer vender para a empresa, ou mesmo migração de parceiros do marketplace para plataformas de outras varejistas com maior credibilidade.
No mercado financeiro, já há reflexos com investidores de debêntures e fundos que usavam ações da Americanas – como é o caso do Nu Reserva, do Nubank, que sofreu uma fuga de cerca de 175 mil cotistas após registrar rentabilidade negativa.
"Outros fundos que já estão sofrendo são os imobiliários, que têm grandes imóveis, e muitas vezes alugam para essas grandes lojas. Tem muito fundo imobiliário que tem imóvel alugado para a Americanas", explica Massara.
Para Joelson Barreto, da FGV, o efeito cascata da Americanas pode acabar afugentando investidores, pelo menos num primeiro momento. "Já temos poucos investidores pessoa física na Bolsa em comparação com outros países. Acho que eles vão ter mais cautela em relação às próximas aquisições", diz.
Por fim, os credores vão também sofrer as consequências, aponta Barreto, do Insper. "As dívidas existentes, numa recuperação judicial, são renegociadas para a companhia seguir viável. O pedido também é para readequar a dívida a uma nova realidade de empresa", diz.
A questão também pode chegar, até mesmo de forma contábil, a outros grupos varejistas, principalmente em relação a como essas empresas contabilizam os procedimentos de "risco sacado", ressalta Massara. "Acredito que todos os varejistas vão passar por um escrutínio num lançamento contábil", conclui.
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