‘Pagamos um preço muito alto’, diz ex-presidente do BNDES sobre empréstimos a países vizinhos
Maria Sílvias Bastos Marques — Foto: GloboNews
O Brasil já pagou preço alto por usar o BNDES para financiar obras em países vizinhos sem os devidos parâmetro e planejamento e, se quiser retomar a estratégia, ainda que não seja a prioridade no momento, vai precisar pensar em outras bases. Essa é a avaliação de Maria Silvia Bastos Marques, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e membro independente de conselhos administrativos de empresas, em entrevista ao Valor Online.
Em visita oficial à Argentina, nesta segunda-feira (23), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apontou o BNDES como possível financiador do gasoduto argentino de Vaca Muerta
"De vez em quando, nos criticam por pura ignorância. Pessoas que acham que não pode haver financiamento de engenharia em outros países. Eu acho que não só pode, como é necessário que o Brasil ajude a todos os parceiros. E é isso que vamos fazer dentro das possibilidades econômicas de nosso país", disse.
Em governos petistas anteriores, a expansão dos bancos públicos foi muito criticada por agentes econômicos e do mercado financeiro. No BNDES, o financiamento às exportações de bens e serviços, principalmente de engenharia, envolvia, em muitos casos, subsídios.
Os empréstimos eram contraídos pelos governos estrangeiros, mas os valores eram pagos em reais às empresas brasileiras que prestariam o serviço lá fora – muitas delas, grandes empreiteiras que, depois, acabaram envolvidas nas investigações de corrupção da operação Lava-Jato.
Essas operações de exportação, nota Maria Silvia, foram classificadas como sigilosas pelo governo da época, mas o sigilo foi levantado por decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Já pagamos um preço muito alto, se vamos fazer, que seja feito de outra forma", afirma ao Valor a ex-presidente do BNDES.
Sob sua gestão (2016-2017), novos critérios e procedimentos foram propostos para futuras operações de exportação, incluindo na análise dos projetos quesitos de economicidade e efetividade, entre outros.
Maria Silvia diz ter dúvidas, por exemplo, em relação a um eventual uso do Fundo de Garantia à Exportação (FGE). Ela lembra que, quando já não estava mais à frente do BNDES, o fundo estava sem recursos e precisou de aporte da União para cobrir calotes em empréstimos tomados por países como Venezuela e Cuba junto a bancos brasileiros.
"O BNDES foi ressarcido com dinheiro do contribuinte porque fez um empréstimo e não tinha garantia, sendo que a grande justificativa para o empréstimo ter sido feito era ter garantia, então, é um círculo vicioso", afirma.
No orçamento de 2023, há uma previsão de R$ 4,8 bilhões (cerca de US$ 900 milhões) para o FGE. Para tentar resolver o problema de falta de liquidez em reais para importadores argentinos, o governo Lula anunciou, também nesta segunda-feira, uma linha de crédito para financiamento de comércio exterior, que seria garantida pelo FGE.
Além de uma garantia certa, é importante definir qual será a fonte de recursos para o BNDES para voltar a realizar essas operações com países estrangeiros, aponta Maria Silvia. "A grande questão no Brasil hoje é o fiscal, é ao redor do que gira toda a incerteza, a preocupação dos agentes econômicos, a volatilidade dos juros", observa.
Cabe também, na sua avaliação, uma discussão de mérito e prioridade na alocação de recursos. "Estamos falando de uma nova gestão que quer colocar como prioridade a inclusão dos pobres no orçamento, mas o orçamento é finito. Quais são as nossas prioridades? Emprestar para países vizinhos ou elevar a renda média nacional, aumentar nossa produtividade, incluir pessoas no mercado de trabalho?", questiona.
Para fazer qualquer empréstimo, explica Maria Silvia, o BNDES realiza uma análise do projeto e do risco de crédito, mas, como as exportações de serviço tinham garantia, as análises se limitavam à parcela que seria exportada. "Não se analisava o mérito como um todo. Esse projeto vai gerar crescimento da economia brasileira, vai gerar empregos, quais os impactos de fato aqui?", indaga.
Se o BNDES decidir realizar uma captação especial e tiver garantias em projetos bem avaliados sob o ponto de vista de projeto em si e de risco, essa será uma decisão do banco, diz Maria Silvia. "Mas usar o dinheiro do contribuinte para fazer esse financiamento, a princípio, acho que não deveria ser definido como prioridade nacional", afirma.
As discussões sobre o papel do BNDES voltaram à tona depois do pedido do governo argentino para que o banco financie a parte final do gasoduto do campo de Vaca Muerta, que levaria o gás da província de Buenos Aires até a fronteira com o Rio Grande do Sul.
De acordo com a Reuters, a obra é de interesse do governo brasileiro, já que o gás argentino custaria três vezes menos que o gás boliviano, e também da Argentina, que quer poder vender ao Brasil um excesso de produção.
Lula afirmou que o BNDES voltará a financiar obras na América Latina, dentro das possibilidades financeiras do Brasil.
"O BNDES vai voltar a financiar as relações comerciais do Brasil e vai voltar a financiar projetos de engenharia para ajudar empresas brasileiras no exterior e para ajudar os países vizinhos, que possam crescer e vender o resultado desse enriquecimento para países como o Brasil. O Brasil parou de compartilhar a possibilidade de crescimento com outros países", disse.
A fala do presidente acendeu o alerta naqueles que temem uma volta a políticas polêmicas dos governos anteriores do PT, em que o banco fazia empréstimos a países que contratassem empresas brasileiras e comprassem insumos brasileiros para obras de infraestrutura.
Na maior parte dos casos, os empréstimos foram pagos, mas houve calotes. E as condições de alguns desses financiamentos, com subsídio, foram questionados, sem falar nos envolvidos em suspeita ou investigação de corrupção no exterior.
"As taxas futuras de juros fecharam em alta. O movimento se deu, principalmente, devido às declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o papel do BNDES em governos passados como indutor do desenvolvimento nacional", anotou a XP em seu relatório diário a clientes desta quarta-feira, em referência aos movimentos do mercado na véspera.
O governo agora quer afastar esses questionamentos e, também, minimizar riscos.
"É um compromisso (o financiamento para a região). Agora, a maneira que isso vai ser formatado, vai ser pensado, fica a cargo das equipes. Lula deu um sinal claro que ele quer ter esse compromisso, mas também não é uma coisa em aberto. Existe um compromisso, mas existe a necessidade de um desenho caso a caso", disse o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta.
No caso de Vaca Muerta, o próprio ministro da Economia argentino, Sérgio Massa, disse que a ideia é que o Brasil ofereça financiamento para empresas brasileiras fabricantes de dutos de forma que elas possam fornecer os equipamentos para a obra com valores competitivos.
"Cada duto que o Brasil não vende financiado, aparecem fornecedores de outros lugares do mundo para ocupar esse espaço", ressaltou Massa.
Também questionado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a visão do governo é de que há casos e casos.
"Nesse caso (de Vaca Muerta), o fornecimento de gás faz toda a diferença. É completamente diferente de financiar obra em outro país, financiar uma estrada em país da África, financiar um porto em país da América Central e financiar uma obra que vai fornecer gás para o Brasil no lugar da Bolívia. É completamente diferente", disse Haddad.
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