Na Etiópia, a seca alimenta a violência doméstica e os casamentos forçados
Pastores e crianças deslocadas pela seca coletam água de um ponto de distribuição em Gode, na região somali da Etiópia, sábado, 27 de janeiro de 2018. — Foto: AP Photo/Mulugeta Ayene
Forçada por sua família a se casar, a jovem Bisharo aguentou apenas cinco dias com o marido abusador antes de fugir de casa para o sul da Etiópia, território assolado pela seca.
Bisharo, um nome falso para proteger sua identidade, buscou ajuda na nova clínica para sobreviventes de violência sexual no hospital de Gode, um município na região somali da Etiópia. A área é a mais castigada pela pior seca dos últimos 40 anos no Chifre da África.
Segundo médicos e assistentes sociais, a seca provocou, além de fome e empobrecimento da população, outro efeito: um aumento nos casamentos forçados e na violência sexual.
O Fundo de Emergência Internacional para Crianças das Nações Unidas (Unicef) garante que os casamentos infantis, ilegais no país, mais que dobraram nas quatro regiões mais atingidas pela seca durante a primeira metade de 2022, em uma comparação com os dados do ano anterior.
Isso porque, para muitas famílias desesperadas, casar uma filha tem múltiplos benefícios. Por um lado, reduz o número de pessoas para alimentar. Por outro, o dote pago pela família do marido ajuda a cobrir as despesas.
A dote de Bisharo foi de 3.000 birr etíopes (cerca de R$ 290), disse a adolescente, originária de um vilarejo nos arredores de Gode.
"Meus pais e os pais do meu marido fecharam o acordo de casamento. Eu não sabia de nada. Ele se aproximou de mim antes e me pediu em casamento, mas eu recusei", disse ela.
O matrimônio com o homem de 20 anos, da família de seu pai e que já está na segunda esposa, aconteceu mesmo assim.
Ela ainda sente dor nas costas, nos ombros e na cabeça por conta dos abusos que sofreu após seu casamento, no começo do ano. "Não consigo nem dormir de noite por causa da dor", afirmou.
Bisharo ficou refugiada na casa de seus vizinhos. O marido foi levado pela polícia, que exigiu a garantia do divórcio mesmo contra a vontade do pai dela.
Ssegunda mais jovem de uma família de cinco irmãos, ela está sozinha. "Só minha mãe pode entender meus problemas, mas não pode me apoiar porque tem medo do meu pai", disse Bisharo.
"Não recebi nenhuma ajuda dele, por isso vim para cá", explicou ela na clínica de Gode.
Desde sua abertura em novembro, um pequeno complexo atrás do hospital local recebeu oito vítimas de estupro e quatro mulheres e jovens que escaparam da violência doméstica. A seca contribuiu em muitos destes casos, explicou Fahad Hassan, médico da clínica.
Hassan acredita que os acampamentos temporários para pessoas desabrigadas pela seca colocam as mulheres em risco, pois a a violência é normal nestes lugares. O médico também contou que já atendeu uma menina de sete anos violentada em um acampamento próximo.
Sahra Haji Mohammed, assistente social, assegurou que os ataques ocorrem quando os profissionais deixam as instalações para comprar alguma coisa ou ao sair do vilarejo para ir buscar água. A pobreza também contribui para a violência doméstica.
As mulheres atendidas na clínica são só a ponta do iceberg, dizem funcionários do acampamento, explicando que muitas vítimas preferem ficar em silêncio pelo medo do estigma.
"Nós sabemos de casos de pessoas que não vêm até aqui, mas que estão em suas casas e tentando se esconder. Nós sabemos. Nós tentamos dizer para elas que aqui é um centro que quer ajudá-las", disse Fahad.
Bisharo é a única sobrevivente que aceitou falar e incentiva as outras a seguirem seu exemplo.
Enquanto espera que cheguem os papéis de divórcio, vive com sua avó. Entretanto, quer começar a decidir novamente seu destino: "Quero me casar com alguém da minha idade".
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