O que há de verdade em lenda de premiê holandês comido pela população em fúria
Obra de Pieter Fris retrata execução dos dois irmãos — Foto: DOMÍNIO PÚBLICO
Exposto no Rijksmuseum, o museu nacional dos Países Baixos, em Amsterdã, um óleo sobre tela de 69,5 centímetros de altura por 56 centímetros de largura mostra dois corpos desnudos, de cabeça para baixo, com os órgãos extirpados.
A pintura, do holandês Jan de Baen (1633-1702), chama-se 'Os Cadáveres dos Irmãos De Witt' e foi feita possivelmente entre 1672 e 1675. Para alguns historiadores, o realismo do quadro é uma das origens da narrativa — possivelmente fantasiosa — de que o primeiro-ministro holandês Johan de Witt (1625-1672) tenha sido devorado pela população enraivecida, depois de linchado.
O que é fato dado como certo foi que Johan de Witt e seu irmão Cornelius (1623-1672), os dois corpos representados na pintura, sofreram uma morte violenta, executada por populares revoltosos. "O processo de linchamento ocorria com muito mais frequência [do que o canibalismo] e há muitos registros dessa prática na Europa dos século 16, 17 e 18", diz.
"Historicamente é possível afirmar que houve linchamento e que partes do corpo dos irmãos de Witt foram cortados", complementa. "Mas registro histórico de que se alimentaram de suas partes, isso é pouco verossímil. Não há nada em relação a isso. É mais resultado do impacto da representação artística do que necessariamente de um fato histórico."
2 de 3 Obra 'Os Cadáveres dos Irmãos De Witt', de Jan de Baen — Foto: DOMÍNIO PÚBLICO
Obra 'Os Cadáveres dos Irmãos De Witt', de Jan de Baen — Foto: DOMÍNIO PÚBLICO
Mas o que acontecia nos Países Baixos naqueles tumultuados anos do século 17 para desencadear tão grotesco episódio? Conforme explica Roberto Georg Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), foi um "período muito conturbado da Holanda, hoje parte dos Países Baixos, que na época era uma das poucas repúblicas no continente europeu".
Filho de uma família de políticos importantes da sociedade neerlandesa de então, Witt era advogado e matemático quando assumiu o posto de grande pensionário da república — algo equivalente ao cargo de primeiro-ministro. Ele ficou no comando do executivo do país por quase duas décadas, entre 1653 e 1672.
Uebel pontua que aquele período "coincidiu com as guerras holandesas com a França, Inglaterra e alguns Estados germânicos". No período, houve "um certo enfraquecimento dos Orange-Nassau, uma das famílias reais mais importantes e fortes na história europeia".
Isto porque o estatuder — chefe do Executivo — da região, príncipe Guilherme II de Orange-Nassau (1626-1650) morreu deixando como único herdeiro, Guilherme III (1650-1702), uma criança recém-nascida. Depois de diversas disputadas, Witt assumiu o poder de fato, enquanto Guilherme III era criado e educado para, um dia, suceder o pai.
"De Witt teve sua responsabilidade no fortalecimento do poder marítimo e geopolítico da Holanda, que à época era concebida como uma das maiores potências econômicas e geopolíticas do mundo", comenta Uebel.
Costumava-se comparar a então Holanda com o império britânico, no sentido de que em ambos "nunca se via o sol se pôr", já que o poderio se estendia por colônias além-mar. "Por meio das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais, o domínio chegava ao Caribe e Américas e ao Sudeste Asiático", acrescenta o professor. "O próprio nordeste do Brasil se viu sob ocupação holandesa."
Nos primeiros anos pós-independência, a Holanda experimentou um momento de crescimento econômico sem precedentes. "Principalmente na área do comércio, a partir da visão protestante de sociedade", frisa Missiato.
O historiador também afirma que o fato de o país ter se configurado como uma república favoreceu esse desenvolvimento. "Os negócios não ficavam presos ao poder hierarquizado, aristocrático", comenta.
Esse cenário promissor passou a incomodar outras regiões da Europa. "Tanto na parte comercial quanto na parte religiosa", diz Missiato, citando regiões da atual Alemanha, além de França e Inglaterra como fortes concorrentes. "No centro de muitas disputas comerciais e religiosas, a Holanda teve diversos confrontos ao longo do século 17", acrescenta.
"No contexto holandês, o país passava por uma guerra de proporções continentais, a Guerra Franco-Holandesa, que deixou marcada a rivalidade de Witt com a casa de Orange-Nassau e seus apoiadores orangistas", conta o professor.
Segundo o professor de história Victor Alexandre, roteirista do podcast História em Meia Hora, o estopim desse conflito foi a recusa de Witt em devolver o poder aos de Orange, mesmo com Guilherme já tendo alcançado a maioridade. "Esse foi o primeiro sinal de rusgas entre de Witt e outras nações, como França e Inglaterra, que começavam a fazer uma forte oposição ao comandante holandês", comenta.
Os dois irmãos acabaram tentando forçar um acordo de paz com a França. "Cornelius chegou a ser acusado de traição e foi preso", narra Uebel. "Na tentativa de ajudar o irmão a fugir, Johan de Witt também foi linchado, assassinado. Há relatos que tenha sido, junto com seu irmão, alvo de canibalismo post mortem."
Uebel não descarta que isso realmente tenha ocorrido, lembrando que tal violência era uma prática que aludia a uma "Europa pré-iluminista" guardando resquícios "do feudalismo e do medievalismo".
Contudo, oficialmente, de acordo com os relatos históricos da política holandesa, Uebel diz que o que consta é que os corpos dos irmãos Witt foram "mutilados após suas mortes pelos opositores orangistas e pela população descontente com a situação pela qual a Holanda passava e a humilhação face à Guerra Franco-Holandesa".
3 de 3 Retrato de Johan de Witt, obra de Jan de Baen — Foto: DOMÍNIO PÚBLICORetrato de Johan de Witt, obra de Jan de Baen — Foto: DOMÍNIO PÚBLICO
"Lenda ou não, também há relatos, inclusive jornalísticos, de que seus corpos mutilados de fato tenham sido alvo de práticas de canibalismo", comenta o professor. "Para a cultura política, o que mais pesa, contudo, é o símbolo do desfecho desta crise política que marcou a transição da república holandesa para uma monarquia orangista e o retorno dos Orange-Nassau ao poder."
O professor de história conta que, sendo ele um dos homens mais importantes dos Países Baixos, há registros sobre sobre os episódios que o envolviam. "E as fontes mais confiáveis que contam sobre sua vida e também sua morte não trazem nada que diga respeito a canibalismo", enfatiza. "É inegável que ele foi morto pela fúria da população e bem provável que a lenda a respeito de um homem público ter sido devorado pelos cidadãos tenha se alastrado porque reforça a noção de que a força de mudança estava com o povo que pedia mudanças."
"Afirmei que historicamente é possível que ele tenha sido comido porque diversas civilizações têm no ritual da antropofagia uma prática relativamente com um em seus respectivos costumes locais", pondera Alexandre. "Os casos mais famosos são dos povos habitantes da mesoamérica e em alguns povos do território que hoje chamamos de Brasil. Porém, todos esses rituais tinham uma conotação religiosa ou simbólica para justificar a ingestão de carne humana. Em nenhum dos casos algum ser humano foi comido por um ataque coletivo de raiva, como nesse caso da Holanda."
Com a morte do primeiro-ministro e de seu irmão, houve um enfraquecimento desse grupo político que eles representavam. "E a casa de Orange-Nassau voltou ao poder. A regência da Holanda, antes comandada por Witt, foi substituída por um reino comandado por Guilherme III, que depois viria a ser também o rei da Inglaterra", contextualiza Uebel.
Ele frisa, entretanto, que embora o episódio tenha deixado "o republicanismo holandês enfraquecido", a experiência republicana ali havida "acabaria por influenciar outros movimentos", como "nos países germânicos e na própria Península Ibérica". "Embora fossem vislumbrar a ascensão de movimentos republicanos apenas no limiar do século 19".
Missiato comenta que, embora Guilherme III tenha sido diretamente beneficiado pela morte dos irmãos Witt, "não há registro de participação direta ou indireta dele no episódio". "No século 19, muitos historiadores afirmavam que haveria essa participação. Hoje, ela é questionável", argumenta.
"Sua ascensão a partir de 1673 destravou muitas consequências para a história europeia", acrescenta o historiador Missiato. "Guilherme III foi fundamental para as transformações geopolíticas que ocorreram na Europa no século 18."
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