'Vi crianças mortas em escola': os 'tanques voadores' que acirram a sangrenta guerra civil de Mi
Ataques foram lançados de dois helicópteros de combate Mi-35 de fabricação russa — Foto: BBC
Pouco antes de sair para a escola na tarde de 16 de setembro de 2022, Zin Nwe Phyo, de nove anos, ficou encantada por ganhar um novo par de sandálias do seu tio.
Ela serviu a ele uma xícara de café, colocou os calçados e seguiu para a escola, que fica a 10 minutos de distância a pé na aldeia de Let Yet Kone, no centro de Mianmar.
Mas seu tio se lembra de ter visto dois helicópteros voando em círculos sobre a aldeia pouco tempo depois. Até que, de repente, eles começaram a atirar.
Zin Nwe Phyo e seus colegas haviam acabado de chegar à escola e estavam tomando seus lugares com os professores, quando alguém gritou que um helicóptero estava vindo naquela direção.
Eles começaram a correr em busca de abrigo, apavorados e gritando para pedir ajuda, enquanto foguetes e munição atingiam a escola.
"Nós não sabíamos o que fazer", disse uma professora, que estava dentro da sala de aula quando o ataque aéreo começou.
"As crianças que estavam dentro do prédio principal foram atingidas pelas armas e começaram a correr para fora, tentando se esconder", conta outra professora. Ela e seus alunos conseguiram se esconder atrás de um grande pé de tamarindo.
"Eles atiraram diretamente sobre as paredes da escola, atingindo as crianças", disse uma testemunha. "Pedaços do prédio principal saíram voando e feriram as crianças no prédio ao lado. Grandes buracos surgiram no piso."
Os ataques foram lançados de dois helicópteros de combate Mi-35 de fabricação russa, apelidados de "tanques voadores" ou "crocodilos", devido à sua aparência sinistra e blindagem protetora.
Eles carregam um arsenal pesado, incluindo um poderoso canhão de tiro rápido e cápsulas que alimentam diversos foguetes. As armas são devastadoras para as pessoas, os veículos e as construções menos resistentes.
Desde o golpe militar que derrubou o governo eleito de Aung San Suu Kyi em Mianmar, dois anos atrás, ataques aéreos como este foram incorporados às táticas mortais da guerra civil do país.
O conflito vive agora um impasse brutal em grande parte de Mianmar, conduzido por uma força aérea que, nos últimos anos, passou a contar com cerca de 70 aeronaves, a maioria de fabricação russa e chinesa.
2 de 4 Zin Nwe Phyo, de 9 anos (à esquerda) e Su Yati Hlaing, de 7 (à direita) foram mortas no ataque à escola — Foto: BBCZin Nwe Phyo, de 9 anos (à esquerda) e Su Yati Hlaing, de 7 (à direita) foram mortas no ataque à escola — Foto: BBC
É difícil estimar quantas pessoas já morreram nesses ataques aéreos. O acesso a grande parte do território de Mianmar agora é impossível, fazendo com que os números reais do conflito fiquem, em grande parte, invisíveis para o mundo exterior.
A BBC conversou com testemunhas, moradores locais e famílias em uma série de ligações telefônicas para descobrir o que aconteceu no ataque à escola.
Segundo testemunhas, os disparos duraram cerca de 30 minutos, arrancando pedaços das paredes e dos tetos.
Os soldados então aterrissaram em dois outros helicópteros próximos, marcharam para dentro — alguns ainda atirando — e mandaram que os sobreviventes saíssem e se agachassem no chão. Eles não podiam olhar para cima ou seriam mortos.
Os soldados começaram então a perguntar sobre a presença de forças de oposição na aldeia.
Dentro do prédio principal da escola, três crianças estavam mortas. Uma delas era Zin Nwe Phyo.
Outra era Su Yati Hlaing, de sete anos. Ela e sua irmã mais velha haviam sido trazidas pela avó. Os pais, como tantos outros na região, haviam se mudado para a Tailândia em busca de trabalho.
Outras crianças sofreram ferimentos terríveis e algumas tiveram membros arrancados. Uma delas era Phone Tay Za, também com sete anos de idade, que gritava de dor.
Os soldados usaram sacos plásticos para recolher partes de corpos. Pelo menos 12 crianças e professoras feridas foram levadas para o hospital mais próximo, na cidade de Ye-U, em dois caminhões requisitados pelos militares.
Duas crianças morreram mais tarde. Nos campos em volta da aldeia, os soldados mataram a tiros um adolescente e seis adultos.
3 de 4 Material escolar no chão de uma sala de aula após o ataque aéreo à escola de Let Yet Kone, na região central de Mianmar — Foto: EPAMaterial escolar no chão de uma sala de aula após o ataque aéreo à escola de Let Yet Kone, na região central de Mianmar — Foto: EPA
Mianmar é um país em guerra consigo mesmo há muitos anos.
As forças armadas lutam contra diversos grupos insurgentes desde a independência do país, em 1948. Mas os conflitos envolviam pouca tecnologia.
Os combates eram principalmente travados entre tropas terrestres, em disputas intermináveis por território nas regiões contestadas de fronteira. Muitas vezes, havia pouca diferença entre estes conflitos e as guerras de trincheira de um século atrás.
Foi em 2012, no Estado de Kachin, no norte do país — pouco antes de a força aérea conseguir seu primeiro helicóptero de combate Mi-35 —, que os militares usaram armas aéreas em grande escala contra insurgentes pela primeira vez.
Ataques aéreos também ocorreram nos Estados de Shan e Rakhine, em alguns dos outros conflitos internos que continuaram ocorrendo durante os 10 anos de intervalo democrático vividos por Mianmar.
Mas, desde o golpe militar de fevereiro de 2023, o exército vem sofrendo pesadas baixas em centenas de emboscadas nas estradas, conduzidas pelas chamadas Forças de Defesa do Povo — milícias voluntárias formadas depois que a junta do governo esmagou protestos pacíficos contra o golpe de Estado.
Por isso, o exército tem usado o suporte aéreo, com bombardeios por aeronaves equipadas para ataques terrestres, ou operações móveis aéreas, como a que ocorreu em Let Yet Kone.
Helicópteros explodem os alvos antes da chegada dos soldados para matar ou debilitar as forças de oposição que encontrarem.
Foram pelo menos 600 ataques aéreos dos militares entre fevereiro de 2023 e janeiro de 2023, segundo os dados do Projeto de Dados de Eventos e Localização de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês), que foram analisados pela BBC.
É difícil estimar a quantidade de mortes resultantes desses ataques. Segundo o Governo de Unidade Nacional, organização clandestina que lidera a oposição ao regime militar, os ataques aéreos das forças armadas mataram 155 civis entre outubro de 2023 e setembro de 2022.
Os grupos de resistência dispõem de pouco armamento e não têm capacidade de reagir aos ataques aéreos.
Eles adaptaram drones comerciais para lançar seus próprios ataques aéreos, lançando pequenos explosivos sobre veículos militares e guaritas, mas seu efeito é limitado.
4 de 4 Os pais de Su Yati Hlaing trabalham na Tailândia, onde esperavam ganhar o suficiente para oferecer uma vida melhor à filha — Foto: BBCOs pais de Su Yati Hlaing trabalham na Tailândia, onde esperavam ganhar o suficiente para oferecer uma vida melhor à filha — Foto: BBC
Não está claro por que Let Yet Kone foi atacada pelo exército.
A aldeia é pobre e tem cerca de 3 mil habitantes. A maior parte deles é de agricultores que cultivam arroz ou amendoim. Let Yet Kone fica na região árida do centro de Mianmar, em meio a um cenário marrom de vegetação rasteira. Ali, a água é escassa fora da estação das monções.
A aldeia fica em um distrito chamado Depayin, onde é forte a resistência ao golpe. Depayin foi palco de muitos confrontos armados entre o exército e as Forças de Defesa do Povo, mas não em Let Yet Kone, segundo os moradores.
Pelo menos 112 dos 268 ataques registrados pelo Governo de União Nacional ocorreram no sul da região de Sagaing, onde fica Depayin.
Um porta-voz do governo militar afirmou, depois do ataque à escola, que os soldados foram até a aldeia para investigar os relatos da presença de combatentes de uma Força de Defesa do Povo e do Exército para a Independência de Kachin, quando sofreram ataques vindos da escola.
Este relato contradiz todas as testemunhas que conversaram com a BBC. Os militares não apresentaram nenhuma evidência de que houvesse na escola atividades insurgentes.
A escola havia sido formada apenas três meses antes, no monastério budista localizado no extremo norte da aldeia. Ela tinha cerca de 240 alunos. Moradores contaram à BBC que esta é uma das mais de 100 escolas em Depayin que agora são administradas por comunidades que se opõem ao regime militar.
Professores e profissionais da saúde estavam entre os primeiros grupos de apoiadores do movimento de desobediência civil.
Em um dos primeiros atos de resistência ao golpe, que recebeu amplo apoio, funcionários públicos decidiram suspender toda a cooperação com o novo governo militar. E, como resultado, muitas escolas e centros de saúde agora são administrados pelas comunidades e não pelo governo.
A mãe de Phone Tay Za conta que ouviu os disparos e explosões começarem cerca de 30 minutos depois de levar seu filho para a escola. Mas, como o tio de Zin Nwe Phyo, ela imaginou que a escola não poderia ser o alvo dos helicópteros de combate.
"Depois que terminou o som dos disparos das armas pesadas, saí em direção à escola", ela conta. "Eu vi crianças e adultos agachados no chão, com a cabeça baixa. Os soldados chutavam quem levantasse a cabeça."
Ela implorou aos soldados que a deixassem procurar seu filho. Eles recusaram. "Vocês se preocupam quando os seus levam tiros, mas não quando acontece conosco", disse a ela um soldado.
Ela então ouviu Phone Tay Za gritando por ela e os soldados permitiram que ela fosse até ele, dentro da sala de aula destruída.
"Eu o encontrei em uma poça de sangue, com os olhos piscando lentamente", ela conta. "Ele disse, 'mamãe, por favor, me mate'. Eu disse que ele iria ficar bem. ‘Você não vai morrer'."
"Comecei a chorar do fundo do meu coração e gritei 'como vocês se atrevem a fazer isso com meu filho?' O monastério estava em completo silêncio. Quando gritei, o eco se espalhou pelos prédios."
"Um soldado me mandou não gritar daquele jeito e disse para que eu ficasse parada onde estava. Eu então me sentei na sala de aula por cerca de 45 minutos com meu filho nos braços."
Phone Tay Za morreu pouco tempo depois. Os soldados não permitiram que a mãe ficasse com o corpo e o levaram embora.
Os corpos de Zin Nwe Phyo e Su Yati Hlaing também foram removidos pelos militares antes que as famílias pudessem vê-los. Eles foram cremados em segredo posteriormente.
A mil quilômetros de distância dali, na Tailândia, os pais de Su Yati Hlaing estavam trabalhando numa fábrica de componentes eletrônicos quando souberam que os militares haviam atacado sua aldeia.
"Minha esposa e eu ficamos desesperados", disse o pai. "Não conseguíamos mais nos concentrar no trabalho. Era perto de 14h30 e não podíamos sair. Continuamos trabalhando, com o coração apertado."
"Os colegas nos perguntavam se estávamos bem. Minha esposa não conseguia mais segurar as lágrimas e começou a chorar. Decidimos não fazer as horas extras habituais naquele dia e pedimos ao chefe da nossa equipe para ir para o nosso quarto", ele conta.
Naquela mesma noite, eles receberam uma ligação da avó de Su Yati Hlaing com a notícia de que ela havia sido morta.
O ataque em Let Yet Kone causou horror e reprovação internacional, mas os ataques aéreos continuaram.
No dia 23 de outubro, jatos da força aérea bombardearam um show musical no Estado de Kachin, durante a comemoração do aniversário de início da insurgência do Exército para a Independência daquele Estado.
Os sobreviventes afirmam que três enormes explosões atingiram a multidão que havia se reunido para o evento, matando 60 pessoas, incluindo comandantes do exército insurgente e uma cantora popular de Kachin.
Acredita-se que muitos outros tenham morrido nos dias que se seguiram, depois que o exército bloqueou a evacuação de pessoas que sofreram sérios ferimentos no ataque.
No dia 15 de novembro, a força aérea bombardeou uma mina de chumbo no Estado de Karen, no sul de Mianmar, perto da fronteira com a Tailândia. A operação matou três mineiros e feriu mais oito.
O porta-voz da junta justificou o ataque afirmando que a mineração era ilegal e estava em uma área controlada pela organização insurgente União Nacional de Karen.
E, somente no último mês, a força aérea bombardeou a principal base da organização insurgente chamada Frente Nacional de Chin, perto da fronteira com a Índia, além de lançar ataques aéreos que atingiram duas igrejas no Estado de Karen, matando cinco não combatentes.
O aumento da capacidade de ataques aéreos é sustentado pelo apoio contínuo da Rússia e da China ao golpe, enquanto muitos outros governos relegam o regime militar de Mianmar ao ostracismo.
A Rússia, especificamente, passou a ser o maior apoiador do regime no exterior. Aeronaves russas, como o Mi-35 e os ágeis caças de ataque terrestre Yak-130, são fundamentais para a campanha aérea contra os insurgentes.
Já a China forneceu recentemente a Mianmar modernos aviões de treinamento FTC-2000G, que também são apropriados para ataques terrestres.
A alta mortalidade dos ataques chamou a atenção dos investigadores de crimes de guerra.
As forças armadas de Mianmar foram acusadas desse tipo de crime muitas vezes no passado, frequentemente por casos de abusos das tropas terrestres, particularmente contra os rohingyas em 2017. Mas o uso da força aérea trouxe novos tipos de atrocidades.
Para os sobreviventes de Let Yet Kone, o pesadelo não terminou em 16 de setembro. Eles contam que muitas das crianças e alguns adultos ainda estão traumatizados pelo que viram naquele dia.
Os militares continuam a investir contra a aldeia. Houve mais três ataques e muitas casas foram queimadas.
A comunidade é pobre. Os moradores não têm recursos para a reconstrução e, de qualquer forma, não sabem quando os soldados estarão de volta para queimar as casas novamente.
"As crianças são tudo para os pais", afirma o líder de uma milícia local. "Ao matar as crianças, os militares os destruíram mentalmente. E preciso dizer que eles conseguiram. Até no meu caso, vou precisar agora de muita motivação para levar adiante a luta revolucionária."
Os pais de Su Yati Hlaing não conseguiram voltar depois da morte da filha e ainda estão na Tailândia. Eles não têm dinheiro para a viagem, nem podem correr o risco de perder os empregos na fábrica. Eles sempre esperaram que aquele trabalho pudesse trazer uma vida melhor para a filha.
"Eu havia imaginado tantas coisas", conta a mãe. "Eu pensava que, quando finalmente voltasse, viveria feliz com minhas filhas, iria cozinhar o que elas quisessem."
"Elas estavam a ponto de começar a jornada", prossegue a mãe. "Minha filha não teve nem o nosso afeto e carinho por perto, já que estávamos tão longe. Agora, ela se foi para sempre."
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