Felipe Miranda: marque a opção verdadeira – cash is king ou cash is trash?
“O investidor deve reconhecer que há momentos em que não existem grandes teses”, afirmou o colunista
“Amor, estou pensando em trocar de carro hoje. Pegar aquele sedan com motor mais potente.”
“Lindo, não acha que poderíamos nos mudar para um apartamento maior? Estou me sentindo um pouco presa aqui.”
“Bora fazer aquela viagem bacana para o exterior? Sempre falamos dela e nunca fazemos…”
O quanto as perguntas acima lhe parecem fora de propósito agora? A mim, elas parecem esdrúxulas, totalmente alheias ao contexto e indignas de uma resposta séria.
Em meio a uma brutal recessão econômica e a uma crise política cuja temperatura só faz subir, faz sentido tomarmos grandes decisões de consumo? Diante de tanta incerteza, não seria melhor postergar dispêndios relevantes? Falo daqueles passíveis de postergação, claro.
Pois é. De certo modo, o mesmo racional vale para investimentos. Por que o analista, o gestor, o investidor teriam de, sempre, aplicar numa grande tese, como se, em todos os momentos, houvesse alguma coisa muito boa para comprar? As mesmas restrições às grandes decisões de consumo também podem valer para as escolhas de investimento. E é justamente o caso agora.
Na sua vida pessoal, provavelmente você reduziu seu padrão de consumo. Em cenários de alto risco e muita incerteza, enxugamos os gastos como podemos, focando em outras prioridades. Esperamos uma circunstância mais apropriada para voltar a gastar.
É isso: esperar. Temos medo de consumir muito agora e de não sobrar nada amanhã — um exercício de maximização intertemporal que, diante de vários riscos sobre o depois, empurra para a frente o consumo de hoje, garantindo a suavização do nosso padrão de gastos no tempo. Não é muito diferente da ideia de Renda Permanente, de Milton Friedman, ou do Ciclo de Vida, de Franco Modigliani.
O investidor deve reconhecer que há momentos em que não existem grandes teses. Aliás, na maior parte das vezes, não há mesmo. Os mercados são informacionalmente muito eficientes. Ou seja, os preços costumam refletir adequadamente as informações disponíveis, de modo que os retornos esperados dos ativos estão condizentes com o retorno médio do mercado ajustado por risco. São raras as situações que lhe permitem ter uma vantagem clara sobre a média do mercado.
Você só vai ter uma grande tese quando os valuations forem muito atrativos, naqueles níveis hediondos, ou quando o cenário for bastante favorável e previsível, lhe permitindo pagar um pouco mais caro, mas com a convicção de um retorno razoável. Nessas raras oportunidades, você precisa ir na jugular.
Segundo o CIO da Empiricus, o cenário atual “não é nada claro e os valuations não são suficientemente atrativos no geral” (Imagem: REUTERS/Paulo Whitaker)
O momento atual é diametralmente oposto ao descrito no parágrafo acima. O cenário não é nada claro e os valuations não são suficientemente atrativos no geral (embora haja exceções, claro, que servem para comprovar a regra). Se não há clareza (de preços e/ou de cenário), não pode haver grande convicção.
Em circunstâncias como a atual, o que você faz, se não pode ir à jugular? Você diversifica, monta posições menores e mantém uma sólida posição de caixa.
Deixe-me falar um pouco mais sobre o caixa usando meu próprio exemplo pessoal. Não acho, claro, que o caso individual lhe reserve qualquer interesse particular. Desculpe se soou assim. Apenas acho que casos particulares ajudam a ilustrar situações gerais.
Na quinta-feira, caiu meu pró-labore, como tipicamente acontece no último dia útil do mês. Prontamente, a turma do Itaú entrou em contato comigo com um leque de possibilidades para aplicar aquele dinheiro.
Breve parêntese: sim, ainda tenho uma grana em bancão, no que aparentemente poderia ser uma das manifestações do clássico “casa de ferreiro, espeto de pau”. Não fujo dessa minha potencial falha. Mas gosto de manter o atendimento no private do Itaú, o que exige, claro, a contrapartida de ter parte dos meus caraminguás lá dentro; o restante, como não poderia deixar de ser, está todo na Vitreo.
Volto ao tema central.
“Podemos programar a aplicação, Felipe?”
Ora, ora, pergunto para mim mesmo (e as perguntas impostas a si geralmente são as mais difíceis): onde investir diante daquela ampla gama de alternativas, todas tão bem fundamentadas pelo banker?
Sabe onde? Em nada. Em rigorosamente nada.
“Desculpe, mas vou deixar o dinheiro no caixa agora. Quero ficar líquido. Estou com bastante medo deste mês de maio. Temos uma tríade de crises domésticas. A ‘tempestade perfeita’, descrita pelo Arminio. A situação política está cada vez pior, enquanto o mercado compra uma narrativa quase infantil de aumento da governabilidade depois da saída do ministro Sergio Moro — o encontro com a realidade vai se dar em menos de um mês. A quarentena vai ser estendida em muitas regiões e medidas de distanciamento social vão ser aumentadas. O setor de saúde do Rio de Janeiro e de Estados do Norte e Nordeste já colapsou — e a coisa vai piorar nas próximas duas semanas. Com imagens de corpos sendo empilhados e a recessão brutal batendo à porta, a popularidade do presidente vai diminuir. O dinheiro não entra pela porta, a ideologia (existe mesmo alguma?) voa pela janela. Então, o Centrão vai começar a chantagear ainda mais o presidente. As estatais serão preenchidas por quadros não técnicos e, então, a turma boa da iniciativa privada que foi pra lá não vai se sustentar. A pressão sobre Paulo Guedes será enorme. Ele vai mesmo patrocinar moralmente esse tipo de aliança com o Centrão? E como será que ele está vendo esse embate de frente entre os Poderes? Também vai patrocinar isso? A crise de saúde e a crise econômica vão retroalimentar a crise política, nos colocando num ciclo vicioso. Tudo acontece num mês que, historicamente (sei lá por quê; isso é mera observação empírica, sem qualquer relação de causa e efeito), é ruim para Bolsa, tanto aqui quanto lá fora. Falando nisso, seria bastante natural esperarmos alguma correção de Wall Street depois da forte alta em abril, dos indicadores econômicos e dos resultados corporativos a serem revelados nos EUA, da percepção das dificuldades materiais em se voltar da quarentena e da escalada das tensões com a China. Dito isso, não tenho vontade de comprar nada agora. Vou ficar quieto à espera de eventuais grandes oportunidades que venham a ser criadas em maio — e eu acho que elas serão criadas. Agora, tudo que vou fazer é esperar.”
O diálogo é verdadeiro. Talvez aqui eu o tenha apresentado com algum lirismo e contornos hiperbólicos. Não escrevi tanto assim no e-mail original, mas a essência está preservada.
Curiosamente, no sábado, tivemos o tradicional Woodstock para investidores, em versão online. O habitual encontro anual da Berkshire Hathaway não contou com Charlie Munger desta vez. Warren Buffett estava sozinho, acompanhado apenas de um copo de Coca-Cola. Por trás dos aforismos otimistas de sempre, como “nunca aposte contra a América” e “as ações vão superar os títulos de renda fixa no longo prazo”, houve mensagens importantes de cautela, algumas verbalizadas, outras tácitas.
A mais relevante potencialmente tenha vindo do seu próprio portfólio. Como diria Taleb, “não me diga o que fazer com a minha carteira, me fale o que você está fazendo com a sua”. Buffett não comprou nada durante a atual crise, pois não identificou nada atrativo. Ao contrário, vendeu toda a posição de aéreas, admitindo ter cometido um erro (sim, ele também é humano, apesar de algumas evidências em contrário), e hoje mantém uma posição recorde de caixa: nada menos do que US$ 137 bilhões.
Há muitos riscos e incertezas associados à pandemia do coronavírus. Para mim, foi sintomático Buffett ter dedicado tanto tempo à crise de 1929, quando os mercados demoraram 22 anos para recuperar o pico anterior — seria essa uma mensagem vinda do mestre dos magos ou simples curiosidade intelectual?
Alguns poderiam argumentar que “cash is trash” (o caixa é um lixo, em oposição ao “cash is king”, o caixa é rei), sob a visão de que, diante de tanta impressão de moeda em nível global, todos os ativos subiriam de preço em termos relativos à moda. Não seriam os ativos subindo, mas o dinheiro caindo — e o que importa é a relação de troca entre eles.
Em alguma medida, eu concordo com o argumento. Se a oferta de ativos está praticamente fixa (porque não há um volume substancial de novas emissões) e a oferta de dinheiro está aumentando, a relação de troca entre eles vai representar mais dinheiro para o mesmo número de ativos. É um desdobramento matemático lógico. Então, o dinheiro deveria cair contra todos os ativos reais.
Qual o problema dessa história quando falamos de ações? Por trás delas, existem empresas, que fazem lucros ou prejuízos. Se os preços das ações aumentam enquanto os lucros caem, estamos dispostos a pagar mais pelo mesmo lucro (clássica expansão de múltiplos).
Isso tradicionalmente acontece em momentos de maior disposição ao risco (queda nos prêmios de risco) e projeção de lucros crescendo à frente. Não é o caso agora. Os lucros não devem crescer com vigor em meio à severa recessão, e o nível de risco está alto, o que exigiria maior prêmio, dada a grande incerteza que nos cerca. Em grandes recessões, costumamos ter compressões de múltiplos, não expansões.
Cedo ou tarde, há de acontecer uma espécie de encontro com a realidade, uma reconciliação entre o preço das ações e o lucro das empresas. Árvores não crescem até o céu. Alternativamente, estaremos pagando caro pelas ações — e, se você é um investidor, para cumprir a regra elementar de finanças, você não deveria gostar de pagar caro. Compre barato, venda caro, não o contrário.
Rápido comentário: caro e barato não devem ser encarados como o preço que você vê na tela isoladamente. É sempre uma comparação entre preço e cenário.
As Bolsas norte-americanas, por exemplo, são mais caras hoje do que eram antes da crise, ainda que sua pontuação nominal seja atualmente inferior àquela. Os preços pioraram, mas o cenário piorou ainda mais. Outro exemplo poderia ser o caso do próprio Warren Buffett com as aéreas. Embora ele tenha comprado as ações por um preço superior ao atual, elas são hoje mais caras do que eram, porque o cenário piorou muito.
Segundo Felipe Miranda, “como vivemos num mundo de baixos retornos e alta volatilidade, o caixa acaba sendo a única opção disponível que está barata” (Imagem: Pixabay)
Há algo sutil sobre o caixa, que o distancia da dicotomia maniqueísta entre ser rei ou lixo. Eu o vejo, principalmente em situações como a atual, como uma opção (americana e sem vencimento) que lhe dá a chance de, a qualquer momento, comprar outros ativos que vierem a ficar baratos. O preço dessa opção é o custo de oportunidade dos demais ativos, em que você poderia estar comprado.
O mais interessante: como vivemos num mundo de baixos retornos (e, portanto, o custo de oportunidade de estar nos demais ativos é baixo) e alta volatilidade, o caixa acaba sendo a única opção disponível que está barata — as demais estão caras por conta da elevada volatilidade.
Às vezes, a melhor coisa a se fazer é esperar, como um observador atento. Não é toda bola que o atacante precisa chutar no gol. A paciência é uma virtude. Como diria Howard Marks, a coisa mais importante agora é estar preparado para um eventual “sell-off”, mental e financeiramente. Que venha o mês de maio.
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