Ana Westphalen: Tempos modernos, vícios antigos
“Infelizmente, a indústria ainda tem muito a evoluir no sentido de democratizar produtos eficientes e boas práticas que permitam ao investidor comum internacionalizar sua carteira”, diz a colunista
“Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo isso por cima de um muro
De hipocrisia que insiste em nos rodear”
Lulu Santos – Tempos Modernos
Pequenas vitórias têm gosto de sorvete de cheesecake com calda de morango e pedacinhos de biscoito. Pelo menos é assim que secretamente eu comemoro conquistas, com sorvete. Mas não é qualquer um, não. Tem que ser tipo um Häagen-Dazs, afinal, estamos falando de momentos especiais, quando me dou ao luxo de pagar mais caro por esse pequeno pote de felicidade. Por sinal, essa prática de autopremiação foi conselho de um gestor de ações (originalmente, a recompensa era vinho, mas adaptei).
Chegamos ao fim de uma semana difícil para os mercados, com segunda onda de Covid-19 e eleições americanas batendo à porta, mas não podemos deixar passar em branco um marco importante para o investidor de varejo. Hoje é possível que qualquer pessoa tenha acesso a gigantes como Google, Amazon e Apple por meio dos BDRs, certificados de empresas estrangeiras negociados na B3. Até a semana passada, esse instrumento era restrito aos investidores qualificados.
Dado o universo de possibilidades que se abriu diante do investidor comum — você sabia que há mais de 600 BDRs listados na nossa Bolsa, número superior ao de companhias brasileiras? —, é natural que muitos tenham se interessado por fundos que investem via BDRs. Atendendo a pedidos, meu colega Felipe Arrais, nosso especialista em produtos globais no Melhores Fundos de Investimento, fez uma varredura na indústria em busca de boas alternativas.
O diagnóstico: o universo de fundos que investem em ações estrangeiras via BDRs é dominado pelos bancões. São seis fundos principais, sendo cinco de grandes bancos (Itaú, Banco do Brasil, Caixa, Bradesco e Safra), e um da Western Asset. Juntos, os produtos dos bancões reúnem 41 mil cotistas, com patrimônio total de R$ 1,7 bilhão. Em bom português, são 41 mil pessoas investindo em produtos ruins.
Abaixo, listamos os pontos mais escandalosos:
& Taxas caras. A mais alta é a do BB Ações Globais FIC BDR Nível I, de 2,6%, seguida por Bradesco FIC Ações BDR Nível I e Safra FIC Ações BDR Nível I, ambos com taxa de administração de 2,5%. Todos eles, por sinal, deixam a desejar em termos de desempenho. A título de comparação, um excelente fundo de ações estrangeiras sugerido por nós, o Morgan Stanley US Advantage, tem taxa de administração final de 1,6% — e esse, sim, bate consistentemente seus benchmarks.
& O “investidor estoque”. Tem uma pegadinha aqui. Nem todos esses cinco fundos dos bancões que citamos estão disponíveis integralmente para investimento; alguns viraram o que se chama de produtos “estoque”. Funciona assim: os investidores que já estão nesses fundos caros continuam lá, mas cria-se um outro produto para novos entrantes, que acessa esse fundo original, só que com uma nova “casca”.
Esse produto paralelo cobrará taxa um pouco menor do que a do fundo-mãe caro, certamente uma adaptação que as instituições tiveram que fazer diante do aumento da competição na indústria.
O Bradesco, por exemplo, descontinuou o Bradesco FIC Ações BDR Nível I (com taxa de 2,5%) e, no fim do ano passado, criou dois veículos que o acessam com taxa mais atrativa, de 1,5%. O Itaú fez o mesmo com o Itaú FIC Ações BDR Nível I (taxa de 1,9%), considerado estoque, e que na nova casca é oferecido com taxa de 0,8%.
“Mas quanto menor a taxa, melhor”, você pode estar pensando… Mas espera aí! E o investidor que está dentro do fundo-mãe caro? Aparentemente, ele não foi avisado de que surgiu um produto mais barato e com a mesma estratégia do fundo que ele possui.
Denúncia: nosso detetive Felipe Arrais foi mais longe e descobriu que, de fato, os resgates dos fundos-mãe caros não aumentaram após a criação dos veículos de menor taxa, ou seja, tem muita gente comendo bola (e gerente fazendo vista grossa).
& Pouca informação e benchmark inadequado. Sentimos falta de dados importantes nos sites dos bancos sobre os fundos que investem em empresas estrangeiras por meio dos BDRs. No caso do fundo do BB, por exemplo, informações essenciais, como o benchmark, não estão claras.
Mas a “vergonha alheia” foi para o fundo de BDRs do Bradesco, que, apesar de ser considerado de estoque, ainda tem parte do material divulgado. Em sua investigação, o Arrais descobriu demonstrativos de rentabilidade oficiais do fundo em que o desempenho era comparado ao do Ibovespa!
Um fundo que compra recibos de ações americanas não poderia, sob hipótese alguma, ser comparado ao Ibovespa. E ainda tem o agravante de os BDRs serem dolarizados…
Conclusão: ficamos bem frustrados com a realidade com que nos deparamos (suspende o Häagen-Dazs que não há muito o que comemorar). Infelizmente, a indústria ainda tem muito a evoluir no sentido de democratizar produtos eficientes e boas práticas que permitam ao investidor comum internacionalizar sua carteira.
Feitas as devidas denúncias, é preciso ponderar que o problema não está só nos produtos oferecidos. Aliás, a tendência é de que fundos mais competitivos e eficientes apareçam para fazer frente ao aumento do interesse pelos BDRs.
O outro desafio é o desenvolvimento da indústria em si. Pense comigo: se para um gestor estrangeiro, que tem à disposição todas as ações listada na bolsa local, já é difícil bater o benchmark, imagine com um universo restrito de papéis disponíveis, como é o caso dos BDRs aqui no Brasil? Acessibilidade é importante, mas eficiência, também.
A parte boa é que temos no horizonte alguns potenciais motivos para comemorar quando o tema é internacionalização dos investimentos. Estamos especialmente ansiosos sobre a possibilidade de serem criados BDRs com lastro não somente em ações, mas em outros ativos listados em Bolsa, como os ETFs. Esse avanço regulatório abrirá caminho para uma série de produtos baratos, que permitirão ao investidor acessar diversas classes de ativos no mundo todo.
Além disso, a Anbima propôs recentemente à CVM a permissão para ampliar para 40% e 60% as parcelas que os fundos destinados ao varejo e a investidores qualificados podem alocar fora do Brasil (pela legislação atual, essas fatias estão em 20% e 40%, respectivamente).
Nós aqui da série Os Melhores Fundos de Investimento estamos acompanhando a maturação do mercado de BDRs e analisando com lupa os produtos que estão surgindo. Aliás, incluímos dois fundos da categoria na nossa “incubadora de fundos” nesta semana. Para saber quais são e conferir quais fundos dos bancões estão na nossa mira, me acompanhe por aqui.
Um abraço,
Ana Luísa Westphalen
O que você está lendo é [Ana Westphalen: Tempos modernos, vícios antigos].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.
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