Felipe Miranda: Investidor não tira férias: questões urgentes ainda para 2023

“Um verdadeiro animal de mercado tira férias apenas com o corpo. A alma, de algum modo, esse mecanismo imoral avassalador e do qual não podemos fugir, continua conectada ao mercado de algum modo”, diz o colunista

“Ladrão não tira férias.”

Li essas palavras numa faixa em Garopaba, acho que foi réveillon de 2003/04. Eu já estava daquele jeitão (calma, CET; eu não estava dirigindo), mas posso garantir: vi várias naves espaciais passando e consegui ler aqueles letras enormes, convidando para estacionarmos o carro, pela módica quantia de R$ 50 por hora.

“Os cara são loco. Até parece que vão roubar nosso carro no Ano-Novo na Ferrugem. Nem a pau que vamu pará aí. Deixa aqui fora mesmo. Tem uma vaga ali, ó…”

Algumas horas e muitas doses depois, obviamente fomos furtados. Levaram o toca CDs, quando isso ainda significava alguma coisa. Ou você aprende por bem ou por mal. Economia burra.

Lembrei disso ao ver a tchurminha ouriçada com a proximidade das festas de fim de ano. “Vai ter recesso?” “Posso tirar férias?” “Este ano já acabou.” Desnecessário dizer que fico em fúria. Galera já está fingindo que trabalha no home office e ainda vem me demonstrar o interesse em férias. “Num ano deste e o camarada está pensando em férias?” — faço aquele sorriso amarelo, penso em me matar, mas mantenho a plenitude. Coloco a minha máscara de pêssego e respondo calmamente que pensaremos nisso num segundo momento. 

Poucos dias fazem a diferença. Enquanto você está na Fazenda Boa Vista enchendo a cara de vinho com aquela bela seleção do Philippe Nicolay Rothschild, apronta-se muita arte no final do ano. A semaninha entre o Natal e o Ano-Novo, com baixa liquidez, é particularmente especial para a caixa de maldades. “Os bons gestores estão comprando…” Eu quero mesmo saber é o que os maldosos estão fazendo.

Um verdadeiro animal de mercado tira férias apenas com o corpo. A alma, de algum modo, esse mecanismo imoral avassalador e do qual não podemos fugir, continua conectada ao mercado de algum modo. A esposa vai ao banheiro na piscina e o sujeito pega logo o celular. Ela volta e o pega no flagra. “Com quem você estava falando? Você está me traindo?” “Estou. Com o Bloomberg Anywhere.”

Há quatro coisas neste instante perturbando a minha cabeça ainda para 2023. 

A primeira delas: este foi o ano em que descobri que sou muito burro. Eu sempre desconfiei, confesso. Mas agora tenho certeza. E, assim, muito burro mesmo. 

Veja só: eu estudo ações há 21 anos. Sou nascido e criado no ambiente do mercado financeiro, porque meu pai vivia disso. Estudei economia na USP por quatro anos, depois fiz um mestrado em finanças na FGV. Meu sócio Rodolfo tem a mesma formação acadêmica que eu, além de ter cursado física na USP e jornalismo na Cásper Líbero. Hoje, temos uma equipe de análise de quase 40 pessoas, igualmente bem formadas e 100% dedicadas. Com todo esse aparato, a gente erra pra caramba! Daí, eu vejo o sujeito que está sozinho na casa dele fazendo day trading e publicando no YouTube… ele só acerta! 

Isso faz algum sentido pra você? Torço muito para que alguns investidores passem a ser adultos ainda em 2023, sem precisar esperar o próximo aniversário, e encarem o mercado financeiro como algo pertencente ao mundo real, com a dor e a beleza de ser o que é. 

Pode acontecer qualquer revolução no mercado de capitais. E é ótimo que aconteça. Mas ele não vai se transformar em filme da Disney e no mundinho de borboletas que sonhávamos quando tínhamos a idade do meu filho João Pedro. Recebi, ipsis verbis, a seguinte mensagem de um dos melhores gestores de ações do Brasil hoje mais cedo: “todo dia é uma batalha”. Isso é o que os melhores profissionais, amparados por equipes ultracapacitadas de dezenas de pessoas, estão pensando e fazendo.

Um segundo ponto bastante imediato se refere à dinâmica dos metais preciosos, pois me parece que pouco tem se falado a respeito, em especial quando ponderamos pela importância do tema. Reitero: poucos dias fazem a diferença e os ajustes acontecem muito rápido. Num mundo de juro zero, você toma uma paulada de 5% num dia e fica difícil recuperar. 

Estamos colocando no modelo “volta à normalidade” e “dólar fraco” e vendo o que ele cospe. Isso dispara uma rápida realocação de portfólios. Sobe o yield de 10 anos nos EUA, batem-se os metais, compram-se mercados emergentes e ações cíclicas, em detrimento à tecnologia. Duas coisas, porém: a reação pareceu desproporcional do ouro frente à escalada dos yields, com um descolamento histórico entre essas coisas. O yield, inclusive, se estabilizou e dificilmente vai subir desenfreadamente — se o fizer, os próprios bancos centrais devem atuar e jogar as taxas longas para baixo. Elevação dos yields agora simplesmente quebra o mundo. 

Até concordo com uma diminuição na margem nos metais preciosos, mas ainda os vejo como atrativos. Nesse primeiro movimento de realocação técnica dos portfólios, é natural algum overshooting. Depois isso corrige e volta a subir. Como resume André Jakurski, não é que os ativos estão subindo; é o dinheiro que está caindo. É só um bear market da moeda fiduciária. O ouro é uma das contrapartes dessa história.

O ponto três é uma espécie de prestação de contas diante de tantas perguntas que tenho recebido sobre o follow-on da XP. “Devo participar ou não? Você acha bom?” 

Eu não acho bom. Acho ótimo. A XP é uma empresa incrível. Como já disse várias e várias vezes, ninguém fez mais pelo investidor pessoa física no Brasil do que a XP. Mantenho profunda e irrestrita admiração pessoal pelos seus fundadores. E falo de coração. Mais recentemente, por meio de uma interação indireta, também desenvolvi grande respeito e admiração pelo Gabriel Leal.

No entanto, uma ação não é uma empresa. É o conceito de conflation. Uma coisa é uma função da outra. Podemos ter uma empresa maravilhosa e uma ação não tão atrativa. Em alguma medida, a ação da XP é vítima do próprio sucesso da companhia.

A empresa é tão boa que todo mundo já sabe disso. Portanto, o problema ali é o valuation. A ação me parece cara perante os desafios que se colocam à frente da companhia.

Sempre digo para as pessoas terem cuidado com o que elas desejam. Passamos anos reclamando do oligopólio bancário brasileiro. Até que caímos num monopólio. A XP reina sozinha fora dos bancos como plataforma de investimentos ao varejo. E não acho que as coisas continuarão assim por muito tempo. 

Primeiro, por uma razão de comparação global e perspectiva histórica. Essa situação de um único player num mercado relevante não encontra paralelos no mundo. Também não acho que vai haver muitas plataformas com escala — vai morrer um bocado pelo meio do caminho. Mas não é o caso de termos só uma, perante várias outras tentativas (até agora frustradas).

Além disso, o modelo não me parece gozar de vantagens competitivas estruturais. Como a XP ainda é muito assentada no modelo de agente autônomo, ela acaba tendo que dividir parte de seu resultado com esse AAI. Dito isso, ela dificilmente será o “low cost producer” dessa história. Outras corretoras digitais, que não têm que dividir o bolo com ninguém, poderão oferecer o produto mais barato do que ela, partilhando o bolo direto com o cliente (e não com o AAI). Ou, alternativamente, essas corretoras digitais terão margem maior do que aquela da XP. Sempre será difícil competir com alguém cuja margem é estruturalmente maior do que a sua.

Talvez o leitor mais crítico pudesse contrapor: “mas, Felipe, o modelo pode ser mais caro, porque ele é melhor. O atendimento pelo agente autônomo dá ao investidor alternativas melhores”. Também não é o caso. Uma interlocução feita com um vendedor, como é o caso do AAI, sempre tende a ser inferior à interlocução com um técnico. Isso vale para lojas de roupa, concessionárias de carro, enotecas e, claro, plataformas de investimento. Se você se orienta por meio da Empiricus ou de qualquer casa de research independente (testem as outras!), você está recebendo a ajuda de um técnico, alguém cuja função é de analisar as melhores alternativas de investimento. Já se você fala com um AAI, você está falando com um vendedor. As chances são muito mais altas de que a orientação feita por um analista ou consultor seja melhor do que aquela de um vendedor/AAI. Claro que pode haver exceções. Mas elas são… exceções. 

Fique claro: não é um problema das pessoas. Eu acredito na idoneidade de 98% dos agentes autônomos. Meu próprio pai foi por anos AAI. Conheço bem a profissão e posso dizer que sou grato a ela. Mas é uma questão da estrutura de incentivos, da natureza da questão. Como diz Dan Ariely: exponha um homem ao conflito e uma hora ele vai cair. Pode ser eu, você ou qualquer outro. Livro do Mankiw, capítulo 1: as pessoas obedecem a incentivos. Precisamos parar de pensar de forma personalista (como brasileiros, no geral) e focar em questões institucionais. Não é uma crítica ao agente autônomo. É ao modelo de negócios. E antes que isso se torne uma disputa pessoal, veja que a própria CVM já escreveu sobre o conflito de interesses inerente à profissão. É “inerente” mesmo.

Um vendedor dificilmente será melhor do que um analista em análise. Da mesma forma que um analista não será melhor que um vendedor em vendas. Simples assim. 

Portanto, o modelo, em sua essência, da XP vai ser mais caro e mais conflitado. Está em risco de disrupção no longo prazo. A disrupção nada mais é do que a viralização de uma alternativa mais barata e melhor para o cliente.

“Ah, mas a XP goza de várias alternativas de agregar serviço para crescer.” Sim, é verdade, basicamente em produtos bancários, que consomem enorme base de capital — sem nem entrar no mérito de que é um nicho completamente novo para eles; ou seja, por mais brilhantes que eles sejam (e eles são! Nada vai mudar isso), não podemos contar com o sucesso antecipado, o ovo ainda está dentro da galinha e fora do círculo de competências. BTG negocia com desconto enorme sobre XP não porque seu management seja inferior ou porque não tem veículos de crescimento, mas basicamente porque boa parte do seu business é muito intensivo de capital.

Assim sendo, por mais que eu admire e respeite a XP e seus sócios (falo isso do fundo do coração), não topo pagar o atual valuation da companhia.

Por fim, dado o frenesi recente em torno das criptomoedas, preciso falar dos criptoativos. Como isso pula 10% pra cima e pra baixo com frequência, não posso esperar 2023. Acho pobre a pergunta “o que você acha do bitcoin?” Ou do ethereum ou do ripple ou sei lá mais qual. A questão relevante é o que essas coisas podem fazer pelo seu portfólio. X não é F(X). E a resposta é que eles permitem ganhos importantes de diversificação. Por serem descorrelacionados, preservam retorno potencial enquanto reduzem o risco da carteira. A boa alocação, diversificada e devidamente balanceada, também não tira férias.

O que você está lendo é [Felipe Miranda: Investidor não tira férias: questões urgentes ainda para 2023].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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