Felipe Miranda: O lobo atrás da porta
“Há uma máxima politicamente correta de que “uma ação é um pedaço de uma empresa”. Do ponto de vista contábil, pode até ser isso. Mas não é a realidade prática” diz o colunista.
Cheguei numa fase da vida em que preciso evitar duas coisas a qualquer custo: genros e noras aventureiros e gente do bem. Fujo dessas coisas como o diabo foge da cruz.
Sobre o primeiro ponto, o negócio não tem stop. É short convexidade total. O jovem inventa de empreender com o dinheiro do sogro e leva embora um naco enorme do patrimônio construído com muito suor, paciência e trabalho. A geração cringe financiando a criatividade de vagabundo metido a descolado.
Já em relação ao segundo tema, esse não me pega mais. Ah, experiência prática, meu caro. Tipo do erro que você só comete uma vez. O camarada fala que é muito honesto, eu já ponho a mão na carteira. Se defender a “governança” mais de uma vez numa mesma conversa, pode saber: cedo ou tarde, o cara vai te roubar. É batata.
Contardo Calligaris tinha um ensinamento que levei pra minha vida. Essa história de “fiz ou estou falando pelo seu bem” não existe. Se você quer agir pelo meu mal, aí faz sentido, porque pelo meu bem, deixa que eu mesmo decido.
Luiz Felipe Pondé costuma dizer que quem se acha do bem é na realidade do mal, não pode ser muito confiável. A suspeita em torno da autovirtude proclamada é algo bem antigo. Santo Agostinho, Pascal, La Rochefoucauld. Como define o último, “a verdadeira coragem está em fazermos sem testemunha o que seríamos capazes de fazer diante de todo mundo”. A virtude é silenciosa. E também um ato público — são os outros que devem nos achar virtuosos, não nós mesmos. “Sou um excelente pai.” Já perguntou pro seu filho?
Como arremata Pondé, a percepção de proximidade de Deus é somente um reflexo da vaidade. Quem põe pra fora a própria virtude é orgulhoso e, muitas vezes, mentiroso. Hoje em dia, até satanista é vegano e sustentável.
Veja o gráfico abaixo:
Ele reflete o desempenho das ações da Méliuz ontem. É só um exemplo ilustrativo do que acontece todo dia com alguma ação. Depois do tanto que subiu, é até natural uma queda forte assim. Não é esse nosso ponto de interesse aqui.
O que aconteceu com ali em torno das 11h20? O que mudou na realidade da empresa das 11h, quando as ações subiam, para as 12h, momento em que elas caíam 6%?
A não ser que algo tenha me escapado (e essa é sempre uma hipótese possível; os analistas precisam entender que convivem com informação assimétrica e sempre há o risco de você não estar sabendo de algo, por mais dedicado que seja), nada mudou na companhia.
Há uma máxima politicamente correta de que “uma ação é um pedaço de uma empresa”. Do ponto de vista contábil, pode até ser isso. Mas não é a realidade prática. Você não consegue ir lá na Méliuz e trocar sua ação por um pedaço qualquer da companhia, tipo a cadeira ou a mesa do Israel. É a noção clássica de conflation do Taleb. Uma ação é função da empresa, sem que possamos caracterizar com precisão a relação exata entre elas. Há correspondência entre as coisas, mas ela não é exata, em especial no curto prazo. Petrobras se relaciona com o petróleo, mas não é o petróleo.
Existe aqui claramente uma referência da ideia de reflexividade de George Soros, a ligação entre o pensamento e a realidade e como essas coisas se relacionam. Porém, existe também algo que, nesse caso, me parece mais concreto e material.
Há várias corretoras dando alavancagem infinita para clientes de varejo. Você não paga corretagem e pode comprar 10 vezes, 100 vezes seu patrimônio numa determinada ação. De repente, alguém aciona uma ordem de stop, uma sala de trade qualquer ou algum famosinho influencer e o negócio cai 10% na sua cabeça. Os quants são atraídos e intensificam o movimento. A pessoa física, que fora atraída pela “corretagem zero”, é zerada compulsoriamente e paga corretagem cheia, tabela B3, porque “estourou os limites de risco”. Quem ganha? A corretora do bem, que cobrava “corretagem zero”, sabe?
Mistérios sempre há de pintar por aí. Se você não topa pagar por nada, você é o produto ou vai pagar sem ver, o que é sempre muito pior (e mais caro).
Há abusos claros na concessão de alavancagem para pessoas físicas, muitas delas operando em grupos e suscetíveis a movimentos de manada. O trading alavancado sob o discurso do bem é o lobo atrás da porta.
Encerro com um comentário rápido sobre o volume expressivo de IPOs simultâneos. Deixo duas reflexões no ar: i) cabe esse número de operações no Brasil em tão curto intervalo de tempo?; e ii) pegue o exemplo da Agrogalaxy: há ou não há gestoras com relacionamento com os bancos coordenadores salvando certas operações e queimando depois essas ações no mercado?
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