Do "Sr. Rui Costa" ao "Sr. Kepler", de Vale e Azevedo a Luís Filipe Vieira, de Ma

Fábio Faria, que viu seu o coração virar-se contra si aos 22 anos, foi um dos ex-atletas convidados. O antigo jogador do Benfica recordou o precoce fim de carreira: "Tinha medo de adormecer e não acordar mais. Chorava todos os dias". Do Créditos: Vítor Garcez/ Organização Póvoa Fut 2024

Consegue imaginar uma conversa sobre futebol que não acabe em excessivos decibéis à boleia de impropérios e acusações exacerbadas, desprovidas da mínima racionalidade? Bem sei, não é fácil, mas ainda há exceções, boas exceções.

Este domingo, na Póvoa de Varzim, "cidade eclética que tão bem representa o desporto nacional", como alguém lembrou, juntou-se o útil ao agradável.

O útil, por reunir um conjunto de valiosos talentos antigos e atuais do futebol português a falar com um louvável conhecimento de causa, e o agradável, pelo facto de muitos deles partilharem entre si uma bonita e sã amizade, depois de tantos anos de rivalidade ao mais alto nível em Portugal e no estrangeiro.

Custódio Castro, antigo internacional e atual treinador do SC Braga B, Ukra, que recentemente colocou um ponto final na carreira aos 36 anos, David Simão, um dos capitães do atual plantel do Arouca, Ricardo, antigo guarda-redes, atual presidente do Varzim e padrinho do evento, ou ainda Fábio Faria, antigo jogador do Benfica que se viu forçado a abandonar a carreira por causa de um problema cardíaco: eis apenas alguns dos nomes presentes no Póvoa Fut 2024.

Um evento que fez por honrar o lado mais puro do futebol, por azar apenas contrariado pelo sol de verão e pela apetecível praia a poucos metros de distância, cenário idílico que inevitavelmente acabou por impedir uma plateia mais robusta, como se esperaria, dada a qualidade do painel apresentado.

Depois de alguns anos de paragem, o Póvoa Fut voltou em força e novamente com um relevante cariz solidário, já que a totalidade das receitas reverteu a favor na Associação Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Criança com Cancro. E, acreditem, quem esteve presente pôde até ouvir histórias secretas de balneário, raramente escutadas em praça pública e perante os microfones da comunicação social.

Falou-se de quase tudo: da importância da saúde nos atletas de alta competição, na forma como a nova geração vê o futebol, da excessiva pressão dos pais (junto dos próprios filhos e dos treinadores) durante o processo de formação, das antigas guerras norte/sul que marcaram, durante vários anos, o ambiente da seleção portuguesa, ou ainda do notável crescimento do futebol feminino.

Do Póvoa Fut 2024 fizeram também parte o guarda-redes Eduardo, antigo internacional português que terminou a carreira no SC Braga, Ricardo Costa, antigo jogador e atual treinador dos sub-19 do FC Porto ou ainda João Tomas, mítico avançado do Rio Ave que chegou a passar apelo Benfica e a representar a seleção nacional.

De Vale e Azevedo, "uma pessoa que esteve a mais no futebol português", ao Sr. Rui Costa

Por ocasião da tertúlia intitulada 'liderança no balneário', David Simão deu uma 'masterclass', desamarrado de quaisquer pressões, para falar sobre a sua carreira e da forma como vê o futebol. Algo raro, raríssimo, nos dias que correm, destacando-se sobretudo a profunda clareza no seu discurso.

O médio do Arouca, um dos capitães dos lobos, não escondeu a desilusão pela forma como os atletas mais jovens vivem o futebol. Não se referindo, em momento algum, ao clube que agora representa, o médio puxou a fita atrás para dar um exemplo concreto da discrepância dos tempos.

O jogador de 34 anos recordou os tempos em que chegou a ser convocado para alguns jogos da equipa principal do Benfica. "Lembro-me de ficar completamente excitado por ser convocado. Fui dos primeiros a chegar ao autocarro, mas não me sentei. Aguardei que todos se sentassem primeiro e só depois escolhi um lugar qualquer, por respeito aos mais velhos. No início tratava o presidente Rui Costa por Sr. Rui Costa. Hoje em dia as coisas diferentes, nenhum miúdo faz isso. E se o chamarmos a atenção, ainda nos diz 'ah, mas cheguei primeiro'. É uma mentalidade diferente", disse o sub-capitão dos lobos, que se assume como um capitão mais presente, disposto a dar 'algumas duras'.

Aliás, recorda, como chegou a fazer a Rafa Mujica, agora a caminho do Qatar: "Antes de se ir embora, agradeceu-me. Pelas vezes que o chamei a atenção. Sabia do potencial dele e valeu a pena".

Ainda sobre a influência dos capitães junto da equipa, Fernando Meira, antigo internacional português que também passou pelo Benfica, recordou o seu papel na Luz, numa altura em que os ordenados não chegaram a tempo. Vale e Azevedo era o presidente.

"Tinha os jogadores ansiosos pelo facto de ainda não termos recebido e como capitão fui falar com o presidente. Disse-me que a ordem de pagamento já tinha sido dada e que no dia seguinte o dinheiro estaria nas nossas contas. No dia a seguir, nada. Tinha novamente os jogadores a perguntarem-me o que se tinha passado. Dessa vez, fui de novo ao gabinete do Vale e Azevedo e disse-lhe: 'O senhor vai ao balneário e vai falar com a equipa agora mesmo a explicar a situação'. Assim foi. Voltou a dizer que no dia seguinte já estariam pagos e no dia seguinte continuávamos sem receber. Mas aí já não estava envolvido, a palavra tinha sido dele", lembrou, antes de afirmar que Vale e Azevedo "esteve a mais no futebol português".

"Foram tempos difíceis, de muita instabilidade. Há que dar mérito atualmente ao Sporting, por exemplo, mas também ao SC Braga, que têm estruturas muito bem organizadas", elogiou, antes de identificar Figo como o melhor capitão que teve.

"O Figo foi sem dúvida o melhor capitão que tive. Eram tempos difíceis, com muita rivalidade norte/sul no balneário (na seleção). Tínhamos não só grandes jogadores, mas também grandes figuras: Jorge Costa, Fernando Couto, Vítor Baía, João Viera Pinto... até intimidavam. O Scolari foi muito importante, porque dava muita importância ao bem-estar do grupo e soube lidar com as picardias que havia no grupo. Mas talvez só isso explique a falta de títulos de uma geração de ouro", recordou o defesa que para além do Benfica representou o Estugarda, o Galatasaray, o Zenit, entre outros.

💥️"Quando estava no FC Porto, os capitães eram o Hélton, Hulk, o Falcão e o Mariano González. Mas se o Mariano dissesse à equipa que era para virar à esquerda e os outros dissessem à direita, a equipa ia toda para a esquerda"

Ukra, personagem mítica do futebol português, sublinhou as diferentes posturas de um capitão, em "que todas são válidas desde que cumpram o seu propósito". Conhecido pela sua postura descontraída e pelas brincadeiras no balneário, o antigo internacional explicou que a equipa (Rio Ave) sabia separar os momentos. "Quando era para brincar, todos alinhavam e respondiam aos meus desafios, mas quando falava mais a sério, todos percebiam que o momento era diferente e calavam-se para ouvir o Ukra".

O avançado que chegou a representar o FC Porto, realçou também a importância dos sub-capitães e da relevância dos líderes discretos. "Quando estava no FC Porto, os capitães eram o Hélton, o Hulk, o Falcão e o Mariano González. Mas se o Mariano dissesse à equipa que era para virar à esquerda e os outros dissessem à direita, a equipa ia toda para a esquerda, garanto-vos".

"Tinha medo de adormecer e não acordar mais. Chorava todos os dias"

Um dos momentos mais marcantes foi protagonizado por Fábio Faria, que aos 22 anos se viu forçado a abandonar o futebol devido a um grave problema cardíaco. Estava no Benfica, quando um valente susto o afastaria para sempre dos relvados.

"O Luís Filipe Vieira foi impecável comigo, ajudou-me muito", começou por recordar, antes de partilhar uma conversa com o antigo presidente do Benfica.

"Cheguei a fazer todos os testes médicos, diziam que havia 20% de possibilidades de continuar a jogar, tentei tudo, mas o Luís Filipe Vieira foi muito direto: 'Já perdemos o Fehér, não queremos passar pelo mesmo", recordou a sinceridade do antigo dirigente.

Um dia, a correr com o pai, desmaiou e abriu o sobrolho. "Percebi aí, definitivamente, que não poderia ser jogador de futebol. Tinha apenas o 11.º ano, não queria sair de casa, chorava todos os dias. Procurei ajuda, um psicólogo e foi isso que me trouxe até aqui", garantiu o agora empresário no ramo do Padel, um desporto que adora e no qual dá cartas. Pelo menos segundo o jornalista Ivo Costa, um dos moderadores do evento, que garante já ter sentido na pele o talento do antigo jogador entre as paredes de vidro.

A propósito da morte súbita no desporto, o médico Hélder Reis lembrou que por ano morrem 100 jovens com idade inferior a 18 anos vítimas de ataque cardíaco no desporto, realçando que "há formas de antecipar" uma situação mais grave e irreversível.

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