Felipe Miranda: Modo Fullgás: a educação financeira e os lucros enquanto diversão
💥️Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research
Eu fui educado via “the hard way”. Não falo aqui das palmadas designadas à correção da rota e à formação de caráter – sim, elas aconteciam também, em frequência alta; com o tempo, foram diminuindo, talvez porque, diante do medo, bastavam os olhares do papai para que logo recuperasse a obediência, ou talvez pela maior serenidade dele.
Eu me refiro à educação como investidor.
Senti duplamente como os mercados podem ser impiedosos e, pior ainda, como, em algumas vezes, parecem estar caprichosamente monitorando o exato momento em que você vai precisar de liquidez para atingir uma mínima histórica. Você pode amar profundamente uma ação ou um título de renda fixa, nenhum dos dois vai lhe oferecer reciprocidade. Como eu amei aquelas PLIM4 (Globo Cabo), precisamente apelidadas de “Globo Nabo”, por razões óbvias…
Papai sofreu muito com os ciclos de mercado. Crises da Tailândia, LTCM, Nasdaq, Argentina, apagão… Das crises a partir da década de 90, passou incólume somente pela do México, porque de Efeito Tequila ele entendia. Era etilicamente agressivo e arrojado, de modo que qualquer mercado em baixa causava grande ressaca no patrimônio da família.
Como maior fã do Ramiro, sempre tentava imitar seus passos como trader. Explico assim, por razões em certo sentido edípicas, o fato de ter começado tão cedo em Bolsa. Os dedos frenéticos tentando atualizar as cotações no terminal Enfoque (sob uma péssima internet discada do ysoke, ainda enquanto provedor) eram a extensão de uma mão marcada por calos e uma representação dos hormônios à flor da pele.
Igualmente concentrado e alavancado, munido da arrogância típica dos adolescentes que sabem tudo, também perdi todo o dinheiro que tinha no primeiro bear market (mercado em tendência de baixa). Era pouco ou quase nada, deixo claro. Mas era meu, sabe? E, para mim, parecia muito. Aquilo me machucou, no bolso e na alma.
A montanha-russa financeira na Rua Realengo 133, apto 91B, trouxe problemas muito maiores do que a mera descendência social. Corroeu parte da minha relação com o papai – acho que ele nunca se perdoou por ter destruído o patrimônio familiar; ainda pior, achava que nós também não o perdoávamos – e afastou o casal.
Se teve algo bom desse processo, foi que pude tirar lições valiosas para a minha trajetória como investidor. Um PhD em finanças, da forma como deveriam ser os doutoramentos em finanças: com o conhecimento emanando da prática para a teoria; não o contrário.
Não quero aqui também assumir aquela atitude deplorável e pseudobonitinha de “se você for ver, foi até melhor… olha o quanto você aprendeu”. Desculpe, não foi melhor. O custo foi alto demais. E também não pretendo aqui vitimizar-me. Hoje está tudo bem. Foi o que foi e ok. Amor fati.
O ponto é que existe algo valioso no fracasso. Ele obriga a uma reflexão e uma mudança de atitude. Caso contrário, se a situação vier a se repetir, você vai fracassar de novo. Repetir um mesmo procedimento esperando resultado diferente é uma das definições de loucura. É o princípio da contraindução de Mário Henrique Simonsen: vamos repetir tudo que deu errado até que dê certo.
O sucesso é um mau professor. O fracasso é o contrário.
O primeiro esconde erros e fragilidades, empurra problemas para debaixo do tapete e abre flancos para sermos atacados numa próxima circunstância, quando as condições exteriores podem não ser tão favoráveis. É difícil manter-se alerta quando tudo está indo bem. A tentação a baixar a guarda é grande diante de assaltos subsequentes em vantagem sobre o adversário.
O Ibovespa a 95 mil pontos e o grande rali dos títulos de renda fixa nos últimos meses são maus professores. Eu realmente me preocupo com isso, porque lucros muito fortes em pouco tempo deseducam. São um casal permitindo os filhos deleitarem-se sem qualquer disciplina, fazendo-lhes todas de suas vontades e sinalizando a possibilidade de consumo infinito (consumo aqui no sentido amplo, não somente de bens materiais) até a (in)saciedade. “Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas. Não se iludam. Não me iludo. Tudo agora mesmo por estar por um segundo”, alertaria Gilberto Gil.
Não é uma preocupação platônica, tirada de uma obsessão exclusiva a meu ecossistema psíquico. Ontem mesmo, encontrei um assinante Empiricus Reserva na rua e ele subitamente me abordou. Mostrou seu portfólio no iPhone novinho, que parecia saído da loja, e perguntou: “Qui cê acha?”.
Ao que se seguiu:
“Olha, me desculpa, eu não faço consultoria individual. Nem posso fazer. Eu publico minhas ideias.”
“Ah, dá uma olhada rápida, vai? Não custa.”
“Já dei.”
“Para, vai. E aí?”
“Bom, 83 por cento em Bolsa parece muito, né?”
“Mas você não está otimista com Bolsa?”
“Estou. Muito, aliás.”
“Então, você não acha que é o caso de comprar mais?”
“No seu caso, acho que é pra vender.”
“Não estou entendendo. Eu tive 55 por cento de retorno nos últimos dois anos.”
“O bull market elege muitos gênios.”
“Como assim?”
“Desculpe, não quis ofender.”
“Não me ofendi, mas também não entendi nada.”
“Olha, a carteira está muito pesada em renda variável. Eu tô otimista, mas posso estar errado.”
“Você está certo desde O Fim do Brasil, pelo menos.”
“Eu dei muita sorte.”
“Você é humilde…”
“Não, cara, eu dei sorte mesmo. Estou falando do coração. Sou fruto da aleatoriedade, só isso. E também não estou reclamando. Mais vale um sortudo rico do que um azarado pobre.”
“Por falar em azar, errei o timing de entrada nas BRF lá atrás. Tô pensando em fazer um preço médio. Qui cê acha? Essas educacionais também tô olhando prum médio.”
“Antes que dê mérdia, eu peço licença. Me desculpe, mas preciso ir para o almoço. Foi um prazer enorme conhecê-lo.”
O sucesso é uma combinação de competência com aleatoriedade. A sorte empurrou-lhe para um lugar além de suas competências – não confundir com a ideia de que tudo é aleatório. É uma soma: algo randômico mais habilidade.
O problema é a tendência de sempre atribuírmos uma posição favorável ao mérito próprio. Narcísicos e egocêntricos, sobreavaliamos nossas competências individuais. E sob o viés de retrospectiva (“hindsight bias”), achamos que o passado aconteceu da única forma que poderia ter acontecido – logo, assim será também o futuro. As coisas são mais fugazes, sutis e tênues do que parecem.
O sucesso atua como um reforço positivo ao excesso de confiança, às próprias ideias e convicções e, do ponto de vista pragmático dos investimentos, às posições em Bolsa. Ele se parece com os algoritmos das FAANGs, pois, assim como Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google, vai nos expondo somente a propaganda de coisas que nós já gostamos e praticamos, empurrando-nos para os extremos de nossas próprias preferências ao não sermos expostos mais ao contraditório.
Tentando tornar o argumento mais palatável para o objetivo aqui, os ganhos passados e presentes funcionam como um empurrão para que você vá se afastando de uma carteira diversificada e balanceada. Perceba que essa dinâmica se materializa por dois caminhos.
O primeiro é meramente algébrico – no modo bull market (mercado em alta), os ativos de risco sobem mais forte e, portanto, passam a responder por mais do que deveriam de seu portfólio, mesmo que você não tenha feito nenhum investimento adicional; uma vez tendo ocupado uma proporção grande demais na carteira, precisamos recalibrá-la para termos algo devidamente diversificado e balanceado.
O segundo atua mais no campo psicológico, sussurrando no seu ouvido sobre suas próprias competências supostamente sobre-humanas. “Olha quanto dinheiro você ganhou na Bolsa. Coloque mais para ganhar ainda mais!” Seu cérebro é desenhado para acreditar nesse tipo de coisa. Qual ego não quer ouvir sobre uma autoavaliação de um super-herói?
Para encurtar e resumir a história, o risco de concentração e de desbalanceamento da sua carteira está alto nesse momento. Belisque-se a todo momento.
Você não precisa ser educado financeiramente via “the hard way”. Eu posso lhe dizer de coração: não é legal. O fracasso dos outros também pode ser um bom professor.
A vantagem da educação financeira é que você pode, na prática, aprender com diversão, cuja etimologia remete ao latim “diversus”, ou seja, ligada à diversidade, à diversificação, tão aqui defendida. Assim é muito melhor.
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