Felipe Miranda: Você quer ganhar dinheiro hoje ou amanhã?
💥️Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research
“Por vezes, disse Julia, sinto o passado e o futuro pressionando
tanto em ambos os lados que já não sobra espaço para o presente.”
Evelyn Waugh
A mente é uma caatinga. Quando chove nesse ecossistema, formam-se sulcos pelos quais a água escorre. O curioso é que, numa nova ocorrência pluviométrica, o líquido volta a ser evacuado pelas mesmas ranhuras previamente formadas, como se os cursos iniciais fossem cicatrizes que atraíssem gravitacionalmente os novos fluidos.
A água corre no bioma árido e de vegetação esbranquiçada típica do Nordeste brasileiro exatamente como as tempestades eletroquímicas em nosso psiquismo.
A metáfora não é minha, claro. Ela me foi oferecida por Contardo Calligaris, para quem guardamos fissuras profundas de que, por vezes, sequer nos damos conta. Segundo ele, ao menos dois desses sulcos psicológicos na civilização ocidental derivariam da influência do Cristianismo.
O primeiro deles se liga a um tema meio na moda: a ideia de que “o mundo está muito intolerante”. Para Contardo, não tem muito essa de que “o mundo está intolerante”. O que não se percebe é que a ideia de tolerância é que é muito nova. A predominância sempre foi na intolerância e isso remete à origem do Cristianismo, segundo ele. O Deus exclusivista (o primeiro mandato é claro nesse sentido, bem como a ideia de que só serão salvos os verdadeiros fiéis) e o caráter missionário da religião (como esquecer Robert De Niro em “A Missão”) formariam a matriz ideológica da intolerância. Tudo aqui de acordo com Contardo, fique claro. Ou, ao menos, com a interpretação que dei à sua palestra na sexta-feira à noite.
O segundo remete à noção da transcendência. E essa é a mais importante para nossos fins, porque guarda implicações também para o próximo de construção, tanto por mexer com o psiquismo do investidor, quanto por envolver necessariamente aspectos intertemporais de tomada de decisão (e o investimento, por definição, é uma tomada de decisão intertemporal). No Cristianismo, há algo que tem uma causa exterior e superior. Sejamos claros: essa vida aqui não importaria muito. Estaríamos apenas de passagem para o que realmente interessa, a vida (eterna) após a morte. A Terra serviria apenas para separar aqueles que iriam para o céu dos outros destinados ao inferno.
Em termos relativos, dá-se mais importância para o depois, em detrimento do agora. A vitória da transcendência sobre a imanência, aquilo que tem em si o próprio princípio e fim. Numa vida cristã estrita e rigorosa, a referência não estaria nessa vida em si, mas no transcendente, no que viria a seguir. Seriam exigidos sacrifícios em prol da verdadeira recompensa futura.
Daí derivariam — mais uma vez conforme Contardo (Felipe está calado até aqui, pois só quer pegar o gancho para o que vem a seguir) — as restrições cristãs à postura hedonista, a dificuldade em se aproveitar de certos prazeres cotidianos típicos, uma eterna falta ontológica pois nada nessa vida seria capaz de nos preencher, uma culpa por não estarmos rigorosamente no caminho da virtude divina, entre outras coisas. O sulco da transcendência condenaria a todos nós a viver sob a ditadura da incapacidade de aproveitar a própria vida. Tudo que interessa estaria sempre no futuro. Tudo, no futuro. O agora não importa mais. E assim a vida nos passa, sem que possamos dela gozar, à espera sempre de um futuro que vai sendo arrastado para o futuro como uma espécie de média móvel. O amanhã será sempre amanhã quando o hoje passar. Na próxima semana começo o regime. Sempre na próxima.
O brilhantismo intelectual e a erudição de Contardo Calligaris provocam o lado mais escuro e obscurantista, sem resposta, em mim. Mais do que isso, remetem ao clássico dilema entre consumir hoje ou investir agora para colher no futuro. Como trocamos o benefício utilitarista do consumo hoje pelo sacrifício de investir neste momento para consumir lá na frente? Quando a imanência deve dar lugar à transcendência em finanças?
Se os quatro leitores estão acompanhando até aqui, talvez já tenham percebido algo: não acredito em processos de construção patrimonial sob excessiva privação. Se você se sacrificar demais, incorre em dois riscos: pode até ficar rico, mas vai viver em depressão (como são privilegiadas as pessoas com fluxo contínuo e estável de dopamina e serotonina); e talvez estique demais a corda e abandone a caminhada. Mais do que a chegada, importa a travessia. Nas peças de Shakespeare (há outras mais consagradas do que essas?), não há mistério narrativo. Está tudo ali, desde o começo. Mais do que o final, interessa ao leitor ou espectador o desenrolar da história, a construção dos personagens, o entrelaço do enredo.
Outra nuance interessante está no tradicional culto dos chamados “value investors” ao conceito de longo prazo. A verdade é que todos gostariam de ganhar dinheiro no curto prazo. Como diria Dório Ferman no livro da Luciana Seabra, o investimento de longo prazo é um trade de curto prazo que deu errado. Você quer ganhar dinheiro hoje (imanência), mas como está absolutamente sujeito à aleatoriedade no curto prazo, empurra o horizonte para o longo (transcendência) — e daí pode ser que o longo prazo nunca chegue na prática, servindo-lhe apenas como desculpa retórica para disfarçar uma ideia pessoal ruim, que você insiste em chamar de boa. A ideia boa numa hora ruim é apenas uma ideia ruim.
Mas esses são pontos menores perante outro de grande interesse pessoal. Para mim, o grande desafio, tanto do ponto de vista intelectual quanto prático, da gestão de recursos no momento — falo aqui mais do escopo de ações — repousa sobre a definição de vencedores e vencidos na corrida tecnológica. Com o perdão do neologismo, os gestores/investidores que acertarem quem serão os disruptores e os disruptados ganharão muito dinheiro.
Vale para os mais variados setores. Os bancos tradicionais ainda ganhariam bastante dinheiro por muito tempo e, portanto, seriam os cavalos certos para o momento, dado que ficaram baratos e podem, eles mesmos, comprarem as fintechs que vierem a ser relevantes? É para comprar Bradesco ou Banco Inter? Ah, pode ser também que você tenha um ponto: a verdadeira fintech com cara de banco seria Mercado Livre, é isso? Os shoppings tradicionais são um screaming buy com alguns a 13 vezes lucros ou essa história de shopping já era, dado que o varejo online vai dominar tudo? Magazine Luiza seria a Amazon brasileira ou a Amazon brasileira seria a própria Amazon, que está aí tocando a campainha e, se ficar impaciente, pode entrar com o pé na porta a qualquer momento?
Ou quem sabe a vencedora de longo prazo num mundo de disrupção exponencial seja aquela que nós nem sequer sabemos? Não seria essa uma possibilidade lógica. Se você se autodenomina crédulo na disrupção, leu “Organizações Exponenciais” e foi com a turminha descolada da Faria Lima pro Vale do Silício na semana passada, talvez acredite que Magazine Luiza vai disruptar (de novo, desculpe pelo termo) o varejo? Ora, mas então por que não acredita que Amazon não vai disruptar a Magazine lá na frente? E por que não acha que outra vai disruptar a Amazon?
O tema parece interessar também aos gestores. Além da Atmos, cuja carta aos cotistas indiquei ontem aqui como leitura recomendada, a Brasil Capital tratou da ciência (ou da arte, sei lá) de investir num mundo de disrupção exponencial, das suas vantagens, mazelas e dificuldades. Também merece leitura. Ali estão vários casos de sucesso, caminhos potenciais a se percorrer, oportunidades no setor. Ao final, uma conclusão curiosa: em meio ao avanço exponencial, continuamos comprando infraestrutura clássica, com Alupar, Rumo, o bom e velho Itausão e o dinossauro Petrobras, aqui talvez como um short no ainda mais dinossauro velho Brasil, marcado pela interferência governamental, má gestão de capital e coisas correlatas.
De minha parte, tenho mesmo mais dúvidas do que certezas. A parte boa é que não saber não significa não agir.
E o que fazer, então, nesse mundo que cada vez entendemos menos? Duas coisas: atuar ainda mais diversificado e não depender do acerto sobre qual será o vencedor da corrida tecnológica para ganhar dinheiro. Isso pode até permear sua análise, mas que seja tratado como uma opcionalidade, não como uma antevisão de que aquilo vai dominar o mundo.
Saímos de uma abordagem focada em adivinhar o ganhador que levará tudo para outra mais focada em assimetria e opcionalidades não precificadas. Quem seriam os vencedores: os súper apps chineses, o Mercado Livre, os bancos velhos que vão absorver os novos, os novos que engolirão os velhos com seus cartões roxos? Ou seriam lilases? Se não consigo definir nem a cor daquele cartão de crédito, como identificar um lucro em seu balanço? Entre o trabalho e o frescobol, pessoalmente ainda prefiro o primeiro.
Fora da tecnologia e da transcendência, vejo a Smiles, principalmente depois de ontem, como uma alternativa boa de imanência. Para ganhar dinheiro relativamente rápido, algo como, sei lá, 20/25 por cento em dois meses, talvez. Assembleia ontem elegeu conselho com boa representação dos minoritários, numa abordagem mais construtiva e permeada pelo diálogo. Meu cheiro é que vem algo aí de incorporação pela Gol com ações avaliadas em torno de 60 paus, envolvendo dinheiro e ações da Gol no swap — se somar o aproveitamento de crédito fiscal derivado de prejuízos acumulados na Gol, cujo valor presente estaria aí entre 1/1,5 bi, tem dinheiro legal na mesa.
Como opcionalidade de tecnologia, vejo CVC, que pode estar montando uma Magazine Luiza ali dentro sem ninguém ver — e se a parte digital não der certo, ainda está a 15 vezes lucros para 2023, numa empresa que sempre, sempre entregou. E tem aí o BTG, cujo braço digital pode representar um valor escondido bem importante — cara, se até o Bradesco vai “spinoffar” o Next, imagina o que a turma do Pactual não pode aprontar. Pra onde vai aquele cheque de 5 bilhões nas mãos do Softbank para comprar fintech no Brasil? Eu só tento ligar os pontos…
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