Felipe Miranda: Inteligente, conservador e milionário; o que fazer?
Somente agora está se recuperando do luto. Desde a morte da mãe há seis meses, ele vinha se escondendo do mundo. Era muito apegado à dona Elza e seu falecimento despertou em Márcio uma tendência ao isolamento muito diferente do temperamento usual de extroversão e sociabilidade típicos de sua adolescência e início da fase adulta.
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Câncer no pâncreas com contaminação no peritônio costuma ser fatal e ele, dizem os amigos, deveria se orgulhar de ter sido tão leal à mãe por toda a vida, em especial na fase final.
Márcio se emudece. Responde apenas inclinando um pouco a cabeça para o lado, como se alongasse a parte oposta do pescoço, e levantando as sobrancelhas. É como se dissesse: “Hmmm, obrigado, mas não sei, deixa pra lá”. Não se convence pelos argumentos que lhe são oferecidos.
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Ele tem certeza: Elza morreu mesmo foi de tristeza e desgosto. Desistiu de viver com a morte do outro filho, Antônio, envolvido em trágico acidente de carro. Tom chegou ao hospital com vida, mas um erro médico durante um transplante levou embora o caçula.
Márcio sente culpa pela morte do irmão. Acha que poderia ter influenciado mais para impedir comportamento tão transgressor do caçula. Seus recados recorrentes não foram suficientes e se cobra por não ter sido tão incisivo. “Mano, você sabe que não sou careta e já fiz muito por aí. Mas beber tanto e dirigir não rola. Na moral.” Encontrava de maneira invariável a resposta: “Me deixa, irmão. Tá de boa”.
Márcio nunca se deu muito bem com protocolos e informações oficiais. Da mãe, herdou o posicionamento liberal nos costumes. Foi ele quem contou ao pai sobre a homossexualidade da irmã Catarina e a decisão de fazerem o casamento gay numa praia de nudismo na Bahia, o que o pai Deoclécio entendeu como uma afronta. “Você lembra que dei o nome de sua avó para sua irmã? Ou ficou louco? Como vó Cata vai receber essa notícia? Não vai ter casamento algum.”
Era mais uma bravata. Deoclécio foi um dos mais felizes na festa do casório, talvez influenciado pelos goles de MD ingeridos, sem saber, junto ao uísque 12 anos.
Márcio sempre foi mais próximo da mãe. Ela era uma intelectual, erudita, de uma família com longa tradição na pintura e na literatura. Elza era sua referência ética e moral.
Via as posições da mãe sobre comportamento e costumes e as pegou também para si. Talvez por isso tenha apoiado tanto a opção da irmã e tenha sido tão compreensivo com o caçula quando esse se viciou em drogas. Problema possivelmente tenha sido o de fazer vista grossa para o alcoolismo de Tom.
O próprio Márcio dava uns “tirinhos” de vez em quando e, inclusive, descolava um pouco para os amigos do mercado financeiro, que sempre se diziam liberais na economia e conservadores nos costumes. As contradições são muitos nas festas de Trancoso, e o conservadorismo nos costumes desse pessoal vai até o primeiro contato com o garçom cuja camiseta estampa “Michael Douglas”. Nesses ambientes, o consumo de sintéticos em quantidades industriais estava liberado.
Márcio também tem suas ambivalências. Da mãe, herdou não somente a maneira de ser e estar no mundo, mas também uma quantia de 10 milhões de reais. Do pai, pegou quase nada, apenas o conservadorismo com o dinheiro. Nunca percebeu a dicotomia, claro.
Na verdade, nunca gostou do tema dinheiro. Ainda mais agora, sem o norte da Dona Elza para outras questões, Márcio havia se afastado por completo do cuidado com as finanças. Refugiava-se em livros de filosofia, com foco no existencialismo de Sartre, e nas coleções de filmes antigos da mãe, emendando a sequência completa de Kurosawa — chegou a cogitar empreender no ramo, perguntando para si mesmo se não valeria a pena comprar todo o acervo da locadora 2001, digitalizá-lo e colocá-lo em streaming.
Desistiu rapidamente ao projetar uma demanda de meia dúzia de gatos pingados interessados em Keaton, Eisenstein, Truffaut, Godard, Fellini, Bergman e Welles. Se não fosse o estado semivegetativo em que se encontra com a depressão, talvez insistisse na empreitada.
O inventário finalmente está pronto. Após 180 dias, Elza ainda é uma ausência presente. Ele ainda está sob os efeitos da depressão, mas a combinação Seroquel com Depakote, junto à própria passagem do tempo, vai costurando a ferida aberta e transformando-a em cicatriz. Ainda de forma tímida, começa a sair da depressão, em processo catalisado pela última cobrança de sua filha.
Rebeca tem apenas 10 anos e é um espetáculo de inteligência. “Pai, você não pode fazer isso consigo mesmo. Você é a maior referência da família e não merece isso. A gente precisa de você bem.” Ela, conhecedora da paixão do pai por Rocky, pega seu iPhone já preparado no trecho em que Mickey dá um sermão ao protagonista:
“Slip the jab will ya, Slip the jab, That’s right, That’s it, Hey I didn’t hear no bell, Alright that’s right slip the jab, That’s it mentalize, See that bum in front of you, You see yourself doing right and you’ll do right. TIME! Ah, come here Rock. My God, you’re ready ain’t ya? That Apollo won’t know what hit him. You’re gonna roll over him like a bulldozer, an Italian bulldozer! You know kid, I know how you feel about this fight that’s comin’ up because I was young once, too. And I’ll tell you somethin’. Well, if you wasn’t here I probably wouldn’t be alive today.”
Rebeca encerra o vídeo e se volta para o pai repetindo a última frase, agora em português: “Se não fosse por você, nós não estaríamos aqui hoje”.
Márcio chora por meia hora ininterruptamente, abraçado à filha. A referência à autodestruição e à própria punição pouco o haviam tocado — sempre detestou o vitimismo. Mas a parte final do discurso de Rebeca o pegou pelas vísceras. “A gente precisa de você bem.” A sensação de responsabilidade e, mais uma vez, a culpa em relação à prole lhe eram insuportáveis. Carregou durante toda a vida, talvez com algum exagero, uma autoimagem de herói, em sua representação clássica de dedicação genuína aos outros, por vezes superior àquela destinada a si mesmo.
Decide levantar. Ele tem inteligência, um perfil conservador e 10 milhões de reais.
Como primeira atitude, liga para um amigo de infância, hoje em dia um financista renomado. Eles se afastaram um pouco, mas sempre mantiveram enorme respeito e amor um pelo outro. Márcio culpa divergências políticas pelo distanciamento; o amigo diz que isso resulta apenas dos caminhos que a vida impõe naturalmente, sem que nenhum dos dois tenha culpa — muito menos o presidente.
Terminada a conversa, Márcio percebe que, pela quantia hoje detida em seu nome, deveria ter um atendimento diferenciado em seu banco de varejo, o que ainda não acontece. Cobra migração de sua conta bancária para o private banking, o que só ocorre depois de ameaça de transferência iminente do dinheiro para a GPS (o amigo de infância o havia instruído para usar da chantagem caso tentassem enrolá-lo).
Finalmente tem uma reunião com o banker. Por influência da mãe, sempre desconfiou dos bancos. Segundo ele, seriam a razão da alta concentração de renda e das mazelas da desigualdade social tão típicas de uma sociedade de mercado — em mais uma de suas ambivalências, adorava citar Piketty para apontar uma suposta tendência à piora dos indicadores de equidade em sociedades liberais. A visão que mantinha dos bancos — esses porcos capitalistas ávidos por arrancar uma tira de couro dos clientes a cada conversa — era superficial, enviesada e até um pouco grotesca. Mas nesse caso lhe foi útil.
Possivelmente influenciado pelo viés de confirmação, que o empurrava para duvidar de cada palavra pronunciada pela banker Bianca, viu uma manifestação orgânica de seu ceticismo. “Bianca, com todo respeito, mas essas coisas são boas mesmo pra mim? Ou você acaba recebendo mais dinheiro conforme vende um produto ou outro? Eu imagino que você tenha metas a bater e bocas a alimentar. Mas, sabe, eu também tenho as minhas. Não me parece que estejamos alinhados aqui.”
Não foi fácil pra ele dizer aquilo. Estava um pouco tomado pela beleza dos cabelos loiros e dos olhos cor de amêndoa, que compunham um contraste bonito com a pele alva e o vestido preto, com decote no ponto certo e corte capaz de marcar de forma sensual mas não exagerada o corpo definido à base de yoga e crossfit. Por sorte ou azar (nunca saberemos), a libido não era a mesma de outros tempos e assim pode desviar da tentação. Foi ríspido com Bianca e acabou percebendo o caráter irreconciliável daquela conversa. Era da natureza da relação, da essência da coisa a dissonância entre o interesse do investidor e aquele da banker. Ele queria uma atrativa combinação risco-retorno; ela queria altas taxas e rebates.
Nova ligação para o amigo de infância. Decide migrar para uma corretora, com os devidos avisos e alertas do financista com quem estudou lá atrás em colégio católico. Recebe indicação de um agente autônomo de confiança. “Esse cara tem um nível melhor do que a média, tanto em termos de inteligência quanto de ética.”
Márcio fica quase amigo de Sandro, seu novo agente autônomo. Percebe como as taxas cobradas pela tal corretora são realmente mais baixas do que aquelas do banco. Vê o movimento como acertado, numa percepção corroborada pelo financista amigo de infância.
Ao estudar um pouco mais a relação, desconfia da insistência de Sandro. Ele é competente, inteligente e rápido. Mas a forma como oferece produtos gera certo desconforto. Márcio havia sido avisado de que o agente autônomo, por regulação, não poderia sugerir ou recomendar investimentos.
Ele era apenas um vendedor. E vendedores comissionados não poderiam induzir compras de produtos financeiros distintos. “Ora, quem parte e reparte fica com a melhor parte.”
Márcio tinha consigo a inteligência de rua e se incomodou com Sandro. Sentiu-se, em algum nível, traído por aquela atitude de, sub-repticiamente, empurrar produtos que acabariam rendendo mais taxas e rebates para o próprio Sandro.
Não dramatizou a situação. Nem era de seu feitio. Apenas lembrou do conto entre o ysoke e o escorpião: “É a minha natureza”. O agente autônomo era um grande avanço sobre o gerente do banco. Tinha uma gama maior de produtos a oferecer e taxas mais baratas, mas ainda se deparava com a mesma essência do problema do conflito de interesses. Quem sugestiona investimentos não pode receber mais ou menos taxas/rebates a partir desse ou daquele produto.
Além de uma decisão financeira, aquilo era uma afronta ética. Então, de novo sob devida orientação, Márcio resolveu procurar um consultor. Essa era a forma de resolver em definitivo o problema do agente-principal. Ele paga uma taxa fixa e recebe consulta sobre como investir.
O consultor não recebe mais ou menos por indicar esse ou aquele produto. Todos alinhados. Fica sabendo depois que assim também funciona majoritariamente nos EUA, o que lhe dá certa satisfação pessoal, uma espécie de sinalização de que está no caminho adequado.
Ele gosta de seu consultor no primeiro encontro. Há uma empatia natural entre ambos. O consultor está feliz porque 0,9 por cento ao ano sobre 10 milhões representa 90 paus. E isso não é ruim, claro. Márcio gosta das regras claras. Prefere pagar de maneira direta por um serviço bom e transparente, do que ser enganado indiretamente.
Há duas características em Márcio, no entanto, que dificultam a boa relação. Normalmente, ele é muito mais inteligente do que seus interlocutores — é o caso aqui. Sempre pensou: o maior problema nunca foi matar um leão por dia, mas, sim, desviar de dez antas.
A segunda coisa: o sujeito não aceita com facilidade as convenções se não lhe forem provadas suas vantagens.
A primeira sugestão do consultor é mandar boa parte de seu dinheiro hoje na poupança para o fundo DI do BTG Pactual Digital, que cobra taxa zero e rende mais do que a tradicional caderneta. “É o melhor do mercado para reserva de emergência.”
Márcio faz rapidamente as contas de cabeça. Fora campeão das olimpíadas nacionais de matemática aos 14 anos e conserva até hoje uma habilidade sem precedentes para esse tipo de cálculo. Concorda com o consultor sobre as vantagens da migração. “De fato, me parece melhor.”
Mas, no fundo, fica um tanto decepcionado. No final do dia, a diferença em termos de dinheiro é pequena. O benefício marginal (diferença de ganho derivada da migração) pouco compensa o que ele considera seu custo marginal (o tempo e a aporrinhação de ter de cuidar da grana).
Está realmente incomodado. Pensa consigo: “A Selic está 6,5 por cento ao ano. A inflação é de 4 por cento. E em média você gasta 2 por cento ao ano para gerirem seu patrimônio”. A situação não é boa. Ele está convencido de que precisa sair das aplicações pós-fixadas.
Novamente estimulado pelo amigo de infância, começa a ler as cartas dos gestores de fundos multimercados. Já havia sido alertado que os melhores estavam fechados. Outras coisas lhe incomodam também. Até poderia tolerar o fraco desempenho de 2018. Sabe diferenciar as coisas e entende performances ruins de curto prazo com naturalidade, como efeito do resultado de forças aleatórias. Não é esse o foco do problema.
A desconfiança vem da arrogância da maior parte dos gestores. Equipes pequenas se dispõem a prever comportamentos dos mercados globais e o fazem com grande contundência. Ele, de novo, é mais inteligente do que os demais.
“Ora, me parece haver um bocado de gente esperta espalhada no mundo. Pode um gestor brasileiro, daqui de longe, ter insights sobre mercados emergentes europeus? Ou identificar boas oportunidades de long x short entre as empresas de tecnologia norte-americanas?”
Também teme que o mau desempenho de 2018 decorra de problemas um pouco mais estruturais, advindos da necessidade de adentrar outros mercados após as gestoras terem captado demais.
“Essa turma não consegue atuar com a mesma agilidade e sem interferir nos preços no mercado brasileiro. Vai ter que ir lá pra fora. Mas uma coisa é o Campeonato Brasileiro, outra é a Champions League.”
Então ele pensa nos fundos de ações. Liga mais uma vez para o amigo financista. De novo, sente um desconforto. Nem consegue muito bem formalizar a desconfiança, mas é tomado por uma dor nas costas que indica somatização do inconformismo intelectual. Tenta conectar as ideias e estruturar os pensamentos.
“Ora, toda essa turma se diz investidor de longo prazo. Agora, está todo mundo captando nas plataformas de varejo, onde os fluxos são mais curtoprazistas e oportunistas.
Estão eles mesmo se colocando numa armadilha. Não é o princípio básico de que o ativo (no caso, de longo prazo por construção da escola buffettiana) deveria casar-se com o passivo (no caso, de curto prazo, porque influenciado pela pressão vendedora do agente autônomo)?”
Tem mais:
“Percebi como aumentaram de tamanho. Tudo muito rápido. Veja se estou louco: os caras multiplicaram as cotas investindo em microcaps, algumas vezes de maneira bem concentrada. Foi essa multiplicação que atraiu o cotista marginal. Só que agora ficaram grandes. Ou seja, por conta da escala que assumiram, não conseguem mais multiplicar as cotas investindo em microcaps de forma concentrada. Só temos uma certeza aqui: a estratégia que atraiu boa parte dos cotistas é irreplicável agora.”
E por fim:
“Lendo as cartas aos cotistas como você me sugeriu, a verdade é que quase não encontro mais fundos de ações. Tudo está virando long biased — as pessoas acreditam mesmo nessa capacidade do gestor de ficar ‘timing the market’, como se ele soubesse quando tem que vender, aumentar o caixa ou fazer short?
E também tem uma galera se transformando em hedge fund, comprando dólar, operando inclinação da curva de juros… onde estão os fundos de ações puros? Sabe, se eu compro um fundo de ações é porque quero ali, naquela parte do meu portfólio, investir em ações.
Não estou pagando um cara pra fazer asset allocation pra mim. Eu tomei essa decisão a priori, antes de destinar aquele percentual da minha carteira para o fundo de ações. Se ele fica comprando dólar, entra em conflito com a posição que já tenho em dólar no meu portfólio. Vira a casa da mãe Joana.”
Márcio foi picado pela mosca do mercado de ações. Está ciente de que precisa se expor a isso. Ao mesmo tempo, está frustrado e não quer perder o capital deixado pela mãe.
Tem medo de decepcionar a dona Elza. Depois de muito refletir, ele chega a um caminho prático. Ele deixa 90 por cento do dinheiro aplicado no fundo DI do BTG Digital e destina os 10 por cento restantes a uma carteira de small caps composta por SMLS3, PRIO3, BPAC11, ENEV3, EVEN3, OIBR3, BIDI4, LINX3, JPSA3 e ALSC3.
É quase impossível perder dinheiro em termos nominais assim. E ele consegue surfar razoável potencial de valorização por meio de exposição diversificada em small caps. Ele nem sabe muito sobre esse nicho. Mas sabe que o entendimento é um substituto ruim para a convexidade. Aplicando Sartre às finanças, percebe que o ganhar dinheiro precede a essência.
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