Inventário de vícios- sobre a compulsão a reger os pequenos prazeres

Comer chocolate é um vício do tipo inofensivo Comer chocolate é um vício do tipo inofensivo Imagem: Getty Images

Há algo de significativo na lenta e firme transformação da palavra vício, ou da ideia que fazemos dele. Basta ler um texto antigo, de preferência escrito há mais de um século, para ver que a noção de vício era um tanto diferente daquela que hoje prevalece em nossa língua. O vício sempre foi uma prática ou uma conduta tida por imoral, uma degradação do sujeito respeitável, um prazer convertido em depravação. "O vício é muitas vezes o estrume da virtude", definiu um narrador de Machado de Assis, evocando essa relação íntima entre opostos que é tão decisiva na literatura de outro tempo. O vício não era, assim, aquilo que hoje a palavra sugere de imediato: a compulsão, a dependência, a fissura, a necessidade abrasiva do que quer que seja.

Faço essa observação porventura inútil para me ajudar a sustentar uma hipótese, bastante coletiva, já que muitos a temos visto e vivido e nomeado de várias maneiras. A hipótese de que nosso tempo acelerado cuidou de acelerar também a relação que travamos com nossos pequenos prazeres, nossas fraquezas, nossos defeitos, tornando-nos compulsivos em atividades diversas. A impressão de que a lógica da produtividade tomou conta também dos nossos hábitos autocomplacentes, fazendo-nos adictos de uma infinidade de pequenezas. A suspeita de que talvez estejamos todos, no fim das contas, um tanto viciados em vícios, transitando sem nenhuma ordem entre os ínfimos e os grandiosos, entre os banais e os nocivos.

Tomado por esse pensamento, me vi por estes dias fazendo um escrutínio dos meus próprios vícios, tratando de examiná-los sob a luz débil da sinceridade. É certo que não me julgo um sujeito tão vicioso assim, que sempre me tive como alguém comedido e ajuizado, que meu vício pode ter sido por vezes a contenção excessiva. Ainda assim não deixei de acumular, em meu inventário de adições corriqueiras, uma série de hábitos dignos da mais severa suspeita, e ao fim do processo não cheguei a saber bem o que fazer daquilo. Se devia me livrar dos vícios para me tornar mais virtuoso, como queriam os antigos, ou aprender a aceitá-los com serenidade e paciência, aprender a viver com eles e a morrer antes que eles me matem.

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