Morte e vida das coisas vagas, das artes, das relações humanas

A Persistência da Memória, de Salvador Dalí A Persistência da Memória, de Salvador Dalí Imagem: Reprodução

Tenho pensado muito na morte. Não na minha própria morte, assunto mesquinho que a ninguém interessaria, nem mesmo a mim, que, morto, nada teria com isso. Tenho pensado muito em outras mortes, na morte das coisas imateriais, na dissolução dos corpos incorpóreos. Na lenta dissipação que pode acometer as formas vagas e imprecisas, aquelas que nem chegávamos a entender como dotadas de vida. Digamos a morte de um país, de um povo, um futuro, uma utopia. A morte de uma cidade, de seu horizonte, de suas fachadas emudecidas. A morte do imorredouro, do que definha diante de nossos olhos e estranhamente permanece firme, inamovível.

Por anos fiquei obcecado com a morte do romance. Li tudo o que podia a respeito, entrevistei centenas de romancistas vivos e mortos, compus com essas inquietações uma dissertação, uma tese, três romances. Por toda parte encontrei ideias fulgurantes e provocativas, mas também um grande desdém. Como falar da morte de algo que se mantém tão rijo, dominante, quase opressivo aos seus irmãos mais tímidos? Como cogitar o fim dos romances se a cada dia novas obras com essa rubrica tomam as livrarias? E, no entanto, não é absurdo pensar que algo decrépito possa se mostrar altivo, que repita ao infinito os movimentos que fazia enquanto vivo, que sua lenta agonia passe quase despercebida. E então quem poderá decretar com máxima convicção se algo assim está morto ou está vivo?

Talvez toda essa questão já seja antiga e possa ser esquecida. É o que pedem aos críticos, aos jornalistas, aos historiadores apocalípticos, que abandonem essa mania de antecipar temores e dar por encerrado o ofício alheio. Que ninguém mais se atreva a lavrar a certidão de óbito do sujeito, do autor, do sentido. Que ninguém mais se inquiete com a performática morte da arte, com a ruidosa morte do samba, com a sutil morte da crônica, com a saudosa morte do soneto. E, ainda assim, nenhum desses casos é simples nem permite declarações terminantes porque nunca é simples como as formas terminam, como termina aquilo que é coletivo e não suporta limites.

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