Por uma vida e uma literatura livres, desabitadas pelo poder
À literatura talvez não caiba uma intimidade excessiva com o poder, a ponto de já não saber se diferenciar dele. Ao discurso literário também não cabe se confundir por completo com o discurso político, com suas afirmações incisivas, suas certezas indubitáveis, seus dogmatismos. Escritores e políticos são feitos de carnes distintas, e sobretudo dispõem de distintas línguas. O que vimos em anos recentes, uma cultura que abdicou de liberdades e dispensou elementos artísticos para incidir sobre o presente, escritores e artistas dissipando complexidades e se associando ao jornalismo para denunciar o exercício atroz do poder, tudo isso teve decerto sua razão de ser, mas é possível que tenha encontrado seu limite.
Por anos me vi a defender a necessidade de uma literatura ocupada, de uma arte ocupada pelos tremores do presente. Em tempos excepcionais, historicamente determinados, a arte se engaja, a arte se transforma para tentar dar novos rumos a uma sociedade, para promover guinadas no debate público. Como ruas e praças têm suas funções alteradas quando o povo as ocupa, também a arte ocupada muda de função, torna-se território inesperado para o embate político. Mas chega o dia em que ruas e praças se esvaziam e recuperam seu movimento habitual, enchem-se de outra vida. Chega o dia em que a arte se desocupa e recupera seu silêncio original, ponto de partida para seu próximo discurso.
Me pergunto, ainda timidamente, se será tempo de desocupar a literatura dessa política mais ruidosa e rasteira, dessa política que não é e não será sinônimo da vida. Não para que se torne alienada ou acrítica, frívola ou indiferente, mas para que possa chegar a ser algo mais do que tem sido. Para que nela desponte enfim a experiência em sua amplitude, para que nela caiba a máxima diversidade de afetos e perspectivas. Para que nela ganhe espaço também aquilo que há de eminentemente político no cotidiano, no comum, aquilo que também se deixou sufocar pelas disputas partidárias e pelo rumor interminável das notícias. E o mesmo talvez valha para a vida em si, não apenas para a literatura. Me pergunto se não será tempo de desocupar a vida dessas muitas urgências oficiais, para que possamos voltar a existir livres e desabitados pelo poder.
Caminhando a passo lento entre sujeitos eriçados, ofuscado pela aura das figuras eminentes, eu era um homem solitário. O que eu queria era sair dali e me juntar a todos os escritores ausentes daquele almoço, me juntar a todas as pessoas que existem distantes daquele mundo, à revelia daquele mundo, e que não têm por que dissipar tanto pensamento nas escaramuças do poder. Queria me juntar de novo à turba e com ela me distrair, celebrar brevemente que a atrocidade já não está apta a chegar à presidência, e então observar a limpidez dos céus e ouvir o aprazível silêncio das ruas.
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