Sobre o fascínio provocado pela sinceridade, na arte e na vida
É curioso o sentido literal que essa ideia tem ganhado para certos artistas, sobretudo para certos escritores. Em Tolstói não era preciso que o criador explorasse uma experiência íntima, vivenciada pessoalmente, bastava que a sentisse. Hoje há uma série de escritores que só conseguem escrever a partir do que viveram, do que fruíram, do que sofreram. Há quem acuse nisso uma perda, uma redução da literatura à condição de testemunho, seu estreitamento aos limites do biográfico. Pode ser, mas não deixo de sentir também o ganho de autenticidade que isso representa, o vigor e a beleza dessa escrita que procura a verdade obstinadamente, sem se desviar pelos caminhos atraentes da invenção, por vezes tão afeita a mentiras e falseamentos.
Leio uma página de Clarice Lispector, uma página qualquer, e é como se a ouvisse sussurrar em meu ouvido, como se ela se confessasse a um leitor desconhecido. A todo momento cai seu disfarce, já não há um narrador a ordenar os fatos e a construir juízos. Tudo num relance passa a ser dela, de Clarice: é a fragilidade de seus narradores o que garante à autora sua potência. É também o que a torna inconfundível e única, não importa o que escreva. Romances, contos, crônicas, comentários, anotações, registros, tudo se funde numa forma singular de escrita, na tradução dessa mulher, de seu corpo, seu pensamento, em palavra viva.
Leio algumas páginas de Annie Ernaux, imediatas, cristalinas, e me deixo contagiar de súbito por sua paixão simples, por seu anseio tão legítimo de reexistir através da escrita. Seu apreço pela vida é tão profundo que ela deseja recriar até seus erros, suas obsessões, seus desvarios, sem se deixar perturbar pela sombra do arrependimento. Nenhum pudor a detém, a vergonha também se faz palavra a ser superada, levada à página para que pertença ao passado, para que já não acosse o presente. Sua aptidão para a sinceridade parece derivar de sua completa independência: ela não deve palavras a ninguém, a não ser a si mesma.
Leio essas mulheres, despretensiosas e impressionantes a um só tempo, e percebo que o desafio maior não é escrever uma literatura sincera, e sim levar uma vida sincera. Elas se despojaram da hipocrisia, mesmo das pequenas mentiras que contamos como atos de cuidado, como supostos gestos de carinho. E, no entanto, suas palavras não resultam hostis, não constituem libelos contra o mundo ou contra os outros, contra as mentiras que inventamos e somos. A clarividência com que elas escrevem é uma nova forma de cuidado, um carinho áspero que nos desperta à experiência legítima da vida.
Pode haver alguma vertigem nessa entrega absoluta à sinceridade, como se de súbito ela pudesse nos engolir. Por ser um homem absolutamente sincero, Tolstói não se contentou em sentir tudo aquilo que escrevia, também se obrigou a viver de acordo com seu sentimento, ou com sua crença ferrenha. Porque precisava ser sincero com seus valores, com seus princípios de igualdade e de defesa dos desvalidos, abandonou sua riqueza, sua casa, sua mulher, e pôs-se a vagar pela Rússia como um profeta. Morreu poucas semanas depois numa estação de trem, ele próprio um desvalido.
Deve haver algum ponto de equilíbrio nisso tudo, penso, uma proximidade máxima com a verdade sem que despenquemos em seu abismo. Eu, como muitos, sinto o fascínio pelas pessoas absolutamente sinceras, mas não consigo me tornar uma delas, não me livro do meu pudor, da minha cautela. Num mundo de espectros e de aparências que cobrimos com falsas palavras, eu me contagio, eu não consigo. Eis o que tenho de mais sincero a dizer neste momento, ainda que tente me buscar ao infinito e me dizer sinceramente: eu ainda não consigo.
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