Graciliano Ramos: a vida seca de um homem sábio do sertão
✅Há poucos dias, uma data maior passou quase despercebida: os setenta anos da morte de Graciliano Ramos. Para sorte dos leitores, suas obras entram agora em domínio público, o que nos permite presumir que se farão mais múltiplas e acessíveis. Para celebrar a ocasião, me ocorreu trazer aqui um perfil que escrevi há muitos anos, para a finada revista Entre Livros, e que talvez possa servir como pequena introdução à vida e à obra desse grande romancista.
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Com os olhos a se perderem na planície avermelhada, medindo o peso dos pés para que não revoltassem a poeira seca das ruas, José Lins do Rego atravessava Palmeira dos Índios, no interior das Alagoas. Seu rumo era um tanto incerto, carente de alguma razão: era a busca pelo "homem que mais sabe mitologia em todo o sertão", como anunciavam as palavras do povo, reforçadas pelas de um certo oficial. Um tal Graciliano, dissera o homem de Mata Grande, alegando se tratar de "um sabidão". José Lins, então fiscal de tributos, não tinha muito a tratar com ele: só o que queria era ouvi-lo desancar sobre as mazelas da vida agreste, ou discorrer sobre as belezas da literatura universal.
Foi dar com um sujeito de trajes impecáveis, a faixa escura do chapéu branco de tom idêntico ao do terno. Graciliano Ramos, alguém aludiu. Entre chapeleta e paletó, dois olhos desconfiados encimavam um sorriso fino e amargo, talvez malicioso. Feitas as apresentações, iniciada ali a grande amizade que ainda viriam a constituir, era a hora de testar tantos boatos. Certeiros. O homem lhe falou de uns artigos de sua autoria, e com tanta discrição e sobriedade, e falou de Balzac, de Zola, de Flaubert, e com tanta precisão, que não restaram dúvidas: só podia ser o mais sábio do sertão. Como adquirira aquele conhecimento todo? Graciliano acendeu o cigarro, recostou-se na parede indiferente à cal que lhe marcaria os ombros, e atendeu ao pedido de José Lins: contou a ordinária história que vivera até ali.
Infância
Nascera em 27 de outubro de 1892, no pequeno vilarejo alagoano de Quebrangulo, primeiro de dezesseis filhos de Sebastião e Maria Amélia, sujeitos que "se conservavam grandes, temerosos, incógnitos". O progresso da família se limitava ao aporte numérico de membros: no íntimo, era microcosmo perfeito dos maus costumes do paternalismo provinciano. Dos primeiros anos, nenhuma lembrança era mais eloquente que a dos "bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelha". Mudara-se para Buíque, depois para Viçosa, e a paisagem sempre árida aos poucos lhe revelava uma humanidade feita de "indivíduos que o atormentavam e indivíduos que não o atormentavam". Ainda mais gradualmente, ia notando, sem muito compreender, as diferenças entre "os que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre". "O juízo dos homens era esquisito. Bem esquisito."
Curtos prelúdios de trégua, "doces parênteses", aconteciam quando o pai baixava a voz e o chicote e lhe contava histórias. Por vezes a mãe fazia o mesmo, empunhava um livro, ou o vaqueiro José Baía se perdia em alguns causos. Grace, como era chamado nessas ocasiões, apurava os ouvidos e se concentrava em "adivinhar o mistério dos códigos" e "perceber o valor enorme das palavras". Mas que o senhor José Lins não pensasse que a transição para o mundo da leitura autônoma havia sido natural, fácil como para qualquer criança atenta. Não, o menino, além de acometido por infinitas tristezas, sempre foi rude, "meio parvo", "vocabulário mesquinho, entendimento escasso". Do instante em que o pai tentou "meter-lhe o alfabeto na cabeça", perdeu a paciência e bateu nele pela incapacidade de aprender, até o momento em que, sozinho, conseguiu juntar uma e outra palavra em leitura compreensível, transcorreram mais de três anos, de modo que foi só aos nove que se viu capaz de desvendar a palavra escrita.
Não custou a tomar gosto pelos livros, ainda assim. Na biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto, pegando emprestado um livro por vez, Graciliano conhecia José de Alencar, Eça de Queirós, Machado de Assis, logo os franceses e os russos e, ali, no subir e descer pela Ladeira da Matriz, por fim "desembestava para a literatura". À noite, olhando as estrelas com a prima Emília e ouvindo explicações de astronomia, juntaria pela primeira vez a vida que o circundava, as histórias que o embalavam e as leituras que fazia, para concluir com um prenúncio de astúcia: "Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes."
Um eloquente prefeito
As palavras que Graciliano disse a José Lins do Rego naquela tarde ensolarada jamais foram registradas senão por um relato apressado do visitante. Só dezoito anos depois, em 1945, é que viria a público o livro de memórias Infância, que descrevia esses primórdios de um escritor em formação. Nesse ínterim, o homem sábio do sertão faria jus à expectativa do outro e escreveria os romances Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas. Face a tais feitos, a crítica da época e também as gerações seguintes não relutariam em incluí-lo no cânone da literatura brasileira, referência pela agudeza de suas frases, pela rica acurácia de seus personagens, pelo poder de síntese de seus enredos. Mas talvez não convenha apressar esta história.
José Lins não se atreveu a perguntar, mas já nesse instante poderia ter descoberto a existência de três contos rabiscados havia tempos, deixados de lado por insatisfação do autor. Cada um desses textos primitivos de Graciliano, que jamais alcançariam os olhos de qualquer distante leitor, prefigurava um dos personagens que viria a ser protagonista de um romance ulterior. O primeiro, "um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura": o truculento Paulo Honório, proprietário da fazenda São Bernardo. O segundo, neurótico como o outro e ainda mais propenso do que ele a cometer o crime que libertaria suas entranhas tomadas de doentia paixão: Luís da Silva, narrador que verteria em palavras toda sua irremediável Angústia. O terceiro, não de todo abandonado, o empregado João Valério, que, às voltas com seu caso amoroso com a mulher do patrão, teimaria em escrever um livro sobre os índios Caetés.
Nas horas vagas da madrugada, quando já fechada a loja de tecidos de que Graciliano cuidava — para dar sustento parco aos quatro filhos, que um dia viriam a ser oito — era esse último livro que o escritor se dedicava a redigir. Com método alinhava cachaça, fumo, café, dicionário, tão importantes quanto a caneta-tinteiro e a resma de papel, e montava o corpo todo sobre a palavra para não a deixar escapar. Se escapasse, acessava logo a régua sempre ao alcance da mão, desenhava um traço na extremidade superior das letras, outro na inferior, e preenchia de tinta a lacuna até que não mais se lesse a palavra indesejada, a frase ou o parágrafo. Toda uma arte de cortar, que Graciliano aprenderia a sofisticar, com gosto e rigor, nos anos por vir.
Antes de ouvir qualquer uma dessas aptidões e malícias, José Lins se refez do relato e se fez capaz de recobrar o rumo desviado. Tinha de voltar a Maceió naquele entardecer, o resto da história que ficasse para outro dia. Não esteve para acompanhar, então, o princípio da carreira literária daquele sujeito eloquente, uma história que começava nas artimanhas que o levaram, naquele mesmo ano, ao cargo de prefeito da pequena vila. Um governante enérgico, incansável, caricatural em sua vontade de romper o poder das oligarquias, mas especial sobretudo pela riqueza estilística dos relatórios que redigia, remetidos a cada fim de ano ao governador, que os lia com deleite. O primeiro, de tão fluido e isento de burocracia, não demorou a trocar as páginas do Diário Oficial pela de outros diários, de outros estados, num ato prematuro de transcendência.
O segundo lhe rendeu mais dois valorosos frutos: um emprego na Imprensa Oficial do Estado, na capital, onde poderia estabelecer contato com a proeminente intelectualidade alagoana; e uma carta de Augusto Frederico Schmidt, dono da editora Schmidt, interessado em receber os originais de algum romance que o tal prefeito Ramos estivesse escrevendo, caso existisse. Existia. Agora já fazia cinco anos que vinha elaborando Caetés, ajustando pronomes e vírgulas, eliminando adjetivos e idiossincrasias, de modo que podia se prezar, modestamente, de ter algo para mostrar — não fosse a carta de Schmidt, nada impediria pensar num escritor que perdesse a vida inteira nos ajustes finais de uma mesma, eterna, história. A publicação levou anos para alcançar as livrarias, tempo bastante para que Graciliano se arrependesse das bobagens que escrevera e se esforçasse em voltar atrás. Inútil. Tranquilizou-se, sem o confessar, com a primeira resenha, do amigo Aurélio Buarque de Holanda: "Graciliano escreve como quem passa telegrama, pagando caro por palavra. Seu livro é excelentemente construído: nele nada se perde e nada falta."
A angústia da prisão
Quando já nenhuma pegada de José Lins se imprimia na poeira seca, quatro anos mais tarde, era Graciliano quem deixava os olhos se perderem na planície avermelhada, de retorno à cidade que antes habitara. Desta vez, distante dos filhos e da segunda esposa, engolia o próprio ateísmo e se refugiava na sacristia da Igreja para dar à luz um mais definitivo, assoberbado, Paulo Honório, filho seu e de um coronelismo rural que perdurava naquelas terras. Dele, além de emblema da iniquidade agreste e mimese da elite conservadora, queria fazer o narrador de um novo tipo de romance: o realismo de quem escreve como fala. A custo de uma esmerada recriação linguística em busca de simplicidade sintática, com obstinação foi traduzindo sua história do português ao brasileiro, do erudito ao sertanejo, até dar por terminada a narrativa de São Bernardo.
Novo apreço da crítica o esperava, e com renovada força ele partia em nova empreitada. Agora, em 1935, vagando pelas ruas entre os bares de Maceió, visitando seus extremos na condição de chefe da Instrução Pública do Estado, voltou a entrever, naquelas paragens, Luís da Silva e logo Marina e logo a cara gorda e fornida, como um espectro, do odioso Julião Tavares. Montava-se o triângulo nada equilátero que constituiria sua história mais vertiginosa, mais mórbida, tão fantasmagórica quanto isenta de irrealismo: Angústia. Uma "realidade fantasmal" — para usar a expressão de Antonio Candido — que refletia a atmosfera lúgubre e nociva que, naquele ano, tomava os ares de Maceió prenunciando a escuridão que a muitos arrebataria, inclusive Graciliano.
Numa manhã de março do ano seguinte, dando ouvidos aos avisos amigos de terceiros, não pensou em escapar: acordou cedo e se pôs a empilhar camisas, um pijama, algumas cuecas, todos dentro de uma pequena mala. Aguardou com paciência, longas horas, sem descuidar o terno impoluto ou afrouxar o nó da gravata, o dia todo até as sete da noite, quando finalmente pôde desafogar: "Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua espera". O homem se espantou com a postura tão improvável, acostumado como estava às revoltas dos demais comunistas que caçava. Nada havia contra Graciliano, nada que o denunciasse partícipe de qualquer insurreição, nenhum processo, nenhuma acusação. Ele, sem pesar, se resignava: "Não me repugna a idéia de fuzilar um proprietário.
É razoável que a propriedade me castigue as intenções". Anos mais tarde, com igual simplicidade, não relutaria em atender a convocação de Luís Carlos Prestes e tornar-se membro do Partido Comunista Brasileiro, passando a militar sem pudor com a arma de sua tinta.
Submetia-se ao avesso das tréguas de infância, passando a amargar um parêntese de dez meses e dez dias engaiolado numa Casa de Detenção. O parêntese dentro do parêntese, mais amargo do que qualquer outro em sua vida, foram os onze longos dias em que teve de habitar as celas lastimosas, os corredores deploráveis, obscenamente sombrios, da Colônia Correcional de Dois Rios, em Ilha Grande. Enclausurado, não assistia ao embranquecer dos próprios cabelos, aos sulcos que aos poucos talhavam sua pele, às profundezas que surgiam abaixo de seus olhos. Sobre si e sobre os companheiros de cela, mais tarde, escreveria: "A educação desaparecera completamente, sumiam-se os últimos resquícios de compostura, e os infelizes procediam como selvagens. Na verdade, eram selvagens". Palavras que ainda demoraria para derrubar sobre o papel, concatenando a outras durante seis anos, jamais chegando a ver o volume impresso de suas Memórias do Cárcere, lançadas postumamente.
O mundo coberto de penas
Quando por fim foi posto em liberdade, entregue a um mundo de encarnada hostilidade, se refugiou na casa do sujeito que, certa feita, num tempo quase imemorial, surgira para conhecê-lo em Palmeira dos Índios. Agora, José Lins não mais carecia de novas narrativas: ele, Jorge Amado, Rubem Braga, Manuel Bandeira, todos se haviam dado por satisfeitos com a aparição do inesquecível Angústia, que havia pouco viera a público — por desgraça, sem que Graciliano tivesse chance de exercer seu ritual de supressão de "repetições e desconchavos". O país se regozijava com a argúcia precisa e crítica do homem sábio do sertão e lhe dedicava prêmios, revistas inteiras, artigos infindos, preparando-se também para receber com atenção, anos mais tarde, Infância, Memórias do Cárcere, um e outro livro de contos, de crônicas, de relatos.
Não se preparava, no entanto, para o derradeiro golpe certeiro do homem cujos pulmões teimavam em se encher de fumaça e começavam a cultivar o câncer que o derrubaria em 1953. Mas era 1938 e Graciliano, consagrado e empobrecido, tinha de vender um conto aqui, outro ali, para pagar o aluguel do seu ínfimo quarto de pensão, para completar o ainda parco sustento da mulher e dos oito filhos. Este é um "mundo coberto de penas", pensava, enquanto via emergir dos papéis enfileirados uma cachorra mambembe e adoentada, o sertanejo Fabiano estapeando contra o chão as alpargatas destroçadas para provar que "sim, é um homem", sinha Vitória a sonhar com um leito menos áspero, um e outro menino, inominados, a correr pela terra árida na tentativa vã de fugir da tristeza esparsa.
"O que me interessa é o homem, o homem daquela região aspérrima. Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e a injustiça humana", diria ao editor, enquanto discutiam as possibilidades de título. "Vida seca", alguém sugeriria, talvez observando os talhos lavrados na pele do próprio autor. Não, melhor: Vidas Secas.
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