O que eu serei quando crescer
"Pessoal chegou gente nova na vila!"
Era uma novidade festiva toda vez que acontecia de chegar mais alguém aqui.
Alguém que tivesse parecença com a gente.
Que não fosse japonês, português ou espanhol.
Essas pessoas moravam em terrenos enormes cheios de pés de chuchu.
Que viviam entre si mesmos.
E que sempre que podiam nos chamavam de ladrões.
Era dali que vinham as professorinhas do Cássio da Costa Vidigal.
Naquele tempo pra dar aula bastava ser branco e assinar o nome.
Não era gente como nós que se alegrava em estar juntos.
Quando acontecia de chegar gente pra se juntar a nós em nossos cercados de terra minúsculos em nossa rua de terra a gente fazia festa.
Gritava e pulava, babava.
Gerson enquanto falava e abanava com as mãos e apontava com os dedos na direção da notícia.
"Ói quem vem lá"
Mais um café com leite.
Havia chegado um café com leite pra tomar parte nas nossas brincadeiras.
Todo café com leite aqui no Ataliba era aquele que ainda não conhecia os melhores esconderijos.
Sempre deixava o rabo de fora, entregava todos os demais.
Era fácil de encontrar.
Não conhecia os ventos pra botar pipa no ar, então ficava a mercê de fazer capucheta com jornal e aprender entrar na mata, tirar bambu, cortá-lo e tratar a vara até ela ficar flexível sem quebrar.
Café com leite era aquele que ainda não tinha sua fieira pra enrolar no pião, às vezes tinha nem o pião.
Era preciso inserir o recém-chegado no grupo de alguma forma.
Hoje se diria o estagiário.
Depois ele ia aprendendo, mostrando as habilidades, ficando melhor, e saltava de recém a amigo.
Eu fui café com leite, com prazer de estar ali.
Enquanto se aprende a gente tem um padrinho e se faz ajudante e colega deste.
Mas não era sempre assim.
Precisava ver ainda a que ele veio.
Se ele poderia brincar entre nós.
Teve aqueles que chegavam e nunca se integravam a nossa patota.
Vinham a trabalho.
Tinha gente aqui no Ataliba que era profissão todo ano trazer alguém que não tinha par, que não vinha com família, vinha pra trabalhar.
Pra virar gente como diziam.
Aquela mulher mesmo ali da viela pobre como a gente era uma delas.
Tinha um casal de filhos e morava num barraco de madeira.
Mas dizia na igreja que era ainda mais pobre e ganhava mantimentos pra sobreviver.
Todo final de ano viajava pra um lugar chamado Norte.
Quando voltava, depois das férias, sempre trazia uma criança de arrasto.
Dizia que trouxe pra criar e dar vida melhor, estudo, qualidade de moradia.
Chegou ter na casa dela seis crianças.
Havia quem dissesse que aquela mulher vendia crianças.
Aquelas crianças não tinham hora nem pra dormir e nem acordar.
Era trabalho em cima de trabalho, da hora que a gente riscava a rua até perder o tempo de vista.
Às vezes aquela criança olhava a gente brincar pelas frestas da cerca.
Nunca fora à escola.
Nunca saia pra brincar.
Nunca ia a uma festinha de Cosme.
Nem ao culto.
Nem a macumba.
Nem a missa ou ao parquinho.
Porque aquela criança vivia assim tão trancada em si e pra dentro daquela família que nem era a dela, só explorava mesmo, até gastar.
Eu reinava,
Mãe sempre deixava trabalho pra eu fazer dentro de casa, mas eu fazia?
Fazia nada.
Só sobre pressão,
Coitada de mãe, tentava me domesticar de todo jeito, me deu boneca uma vez até.
Eu brincava com as meninas?
Deus me livre.
Enjeitava elas a todo custo.
Por isso eu nunca via que na família recém-chegada tinha meninas, mas tinha.
Aliás era o que mais tinha.
Meus brinquedos eram pra fora de casa.
Diziam que era brincadeira de menino.
Que eu era macho-fêmea.
E eu ligava?
Ligava nada.
Mãe era que se aborrecia.
Me fazia botar vestido rosa, chapéu rosa com laço de fita e meia branca todo domingo.
Eu gostava quando chovia, eu vinha pisando as poças de lama botando o sapato pra beber água igual pato.
Mãe arreliava comigo, me dava uns cascudos, dizia que eu precisava ser gente, me preparar pra ser alguma coisa quando eu crescesse.
E eu já não era?
Mandava na rua, era líder de todas as brincadeiras e tomava decisões importantes, chegava julgar quem saia quem ficava.
Este era meu trabalho, era isto também que eu queria ser quando crescesse.
Caso eu crescesse.
Dona da brincadeira.
A maioria dos amigos morriam com verminose.
Será que eu cresceria?
Nem pensava nisso.
As mulheres naquele tempo rezavam só pra gente sobreviver, chegar na parte alta da soleira da porta.
E sumir no oco do mundo, trabalhar na casa de uma tal de madame.
E elas gostavam de reza, então eu e os demais tínhamos a Salve Rainha, o Credo, o Padre Nosso na ponta da língua.
Era um pré-requisito.
Que a gente usava a larga pra ter sorte.
Eu era mais instruída, uma macumbeira mirim, até pemba eu tinha e escrevia no chão com ela igual eu via fazer.
Agora de organização eu era boa, pena que mãe nunca entendia.
Trazia tudo separadinho.
Por época, burca, pião, rabiolas e cerol.
Só faltava dobrar a roupa pra caber tudo na mesma gaveta.
Eu dobrava?
Dobrava nada, ficava lá as línguas meio escondidas com a língua pra fora da gaveta.
Na matula só traquinagem, estilingue, fieira, cola de madeira feitas com vidro, folha de seda pra pipa e pra refeição algumas ervas como maria pretinha ou fysaliz que a gente ia catando pelo caminho.
Se eu crescesse eu queria ser aquilo que eu já era e fazia bem.
De manhã, no rádio, aquele homem Gonzaga cantava aquelas músicas que falava do mesmo lugar de onde o recém-chegado havia chegado, mas ele ainda falava sertão.
Que palavra bonita.
"Não há, ó gente, ó não. Luar como esse do sertão", ele cantava.
Eu sou de um tempo que só o adulto movia o botão do rádio.
A gente era conduzido.
Vichi, eu era um moleque poético.
Eu gostava de poesia.
Meu olhar pairava no ar de quando eu ouvia seu Gonzaga cantando cada coisa tão bela.
E eu nem queria saber se saudade escrevia com "S" ou com "Ç", era triste e era bonito tudo junto.
Às vezes eu sentia saudade de coisas que eu nem sabia se existia.
Olha o padrão de qualidade que esta criança foi potencializada.
Quem muito recebe, muito lhe será cobrado.
Eu já tinha trabalho, carreira e dom, e nem sabia de o que, mas tinha.
A saudade era minha, eu queria ter, pronto... Tinha.
Os adultos ficavam de soslaio quando viam chegar gente.
Olhando pelas frestas, querelando briga.
Medindo terreno ao pé da cerca pra não perder território.
Eles vinham chegando assim do nada.
Uns vinham com a família toda, cheios de sacos, malas e balaio.
Outros vinham sozinhos, e só depois é que iam trazendo a família um a um.
Outros esqueciam a que vieram, faziam outra família ou se entregavam à bebida.
Às vezes ficavam entre nós algum tempo, tentavam gostar da gente da terra.
Mas acabava que de repente não suportava esta tal de saudade e enfiava o pé no mundo ia embora.
E aquele homem continuava cantando no rádio.
E eu tinha esta aula aberta de o que é São Paulo ou o que era.
Alguma coisa sequestrou alguns amigos que brincavam comigo ali na rua.
Eles começaram brincar de uma tal de política.
Sumiram, vieram nem pra o ritual de despedida.
Lembro Dona Antonia dizer pra mãe chorando que Deus era ingrato quando não permitia que a mãe nem despedisse, nem enterrasse o próprio filho.
Não era Deus, era uma coisa que chamava ditadura.
As professoras naquele tempo mandavam a gente rezar pra presidente da república, Emílio Garrastazu Médici.
O que era república?
Quanta saudade ainda cabe aqui.
Hoje eu sei que a república é uma coisa expulsiva.
Sei por que meus coleguinhas eram expulsos de sua terra.
E sei por que o seu Gonzaga cantava tristezas no rádio.
Não precisava ser tão assim.
Eu cresci e juntei os pontos.
Naquele tempo a escola não me respeitou.
Mas a rua e o rádio e vizinhos enriqueceram meu ndotolo.
Pensa que deixei de brincar?
Deixei nada.
Morrerei brincante, tenho uma profissão de fé.
Não precisarei esperar a idade pra ser feliz.
Eu estou vivendo.
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