Entrevista com o cronista: um diálogo entre o homem e o marasmo
Quando o encontrei, tinha o olhar perdido no vazio, espiava-se distraído no espelho. Pela casa em desordem, pela roupa em desalinho, julguei que não quisesse me receber, que nessa manhã talvez preferisse ficar sozinho. Recuei um passo cogitando partir, avaliando que seria melhor deixar a entrevista para outro dia. Não, não, pode passar, ele disse em tom firme, quase como uma exigência, hoje não sei bem o que fazer, sua companhia é bem-vinda. Cronistas são assim, pensei, comprometidos com sua própria displicência.
Recostou-se no sofá e pediu que eu sentasse ao seu lado, em posição incômoda para uma conversa. Deixou que os braços caíssem sobre as almofadas, e nesse gesto percebi que estava cansado. Teria sucumbido a uma imobilidade total, não fosse pelos calcanhares que batiam no chão, traço claro de nervosismo, e pelos joelhos que tremiam no mesmo ritmo acelerado. Estava mais tenso do que eu imaginaria, ainda que em pleno ócio. Continuava a ser uma figura ausente e esquiva, mas achei que era tempo de começar o diálogo:
— Alguma coisa o perturba, cronista?
— É bem possível, mas talvez não seja mais que a crise costumeira, a falta infalível do que dizer. Passei boa parte da semana em casa, sem nada ver, nada ouvir, sentindo menos que outras vezes, ou sentindo coisas que preferi não confessar a ninguém, nem a mim mesmo. As crianças doentes oscilando entre a febre e a euforia, roubando a solidão, conspurcando o silêncio. Como uma muito particular e ínfima repetição da quarentena, lembra? Sobre isso eu até poderia escrever, mas seria uma extrapolação, e as pessoas já não querem ler a respeito.
— De fato, não querem. Um passado tão recente parece pouco digno de visita, mais próprio ao esquecimento. Não haverá qualquer coisa distante a explorar, alguma história antiga?
— Não haverá passado. Tem dias em que passado nenhum existe. Admiro os escritores capazes de reconstituir num relance a infância inteira, de descrever a forma exata das nuvens na tarde em que tomaram o primeiro banho de chuva. Não sou desses. Da minha infância disponho de umas poucas cenas que já narrei, e tudo mais é um borrão indiferente. Infância, juventude, vida adulta, é impressionante como quatro décadas podem se tornar nada, se fazer inacessíveis ao pensamento, às vezes.
— Está melancólico hoje, já vejo. Do passado não precisamos saber, tudo bem. Falemos então do presente, não precisa ser do seu. Nada a comentar do que leu e do que viu esta semana?
— O que mais me chamou a atenção foi a história do caranguejo, você viu? Um caranguejo invadiu a pista do aeroporto de Vitória e obrigou um avião a arremeter seu pouso iminente. Foi o crustáceo mais audaz de que já ouvi falar, e o mais influente. Pensei que um cronista poderia fazer bom uso desse acontecimento singelo, mas outro cronista, não eu.
— De tudo o que você viu, o mais interessante foi um caranguejo?
— É que houve um momento em que eram muitos caranguejos, tomando o aeroporto inteiro, tentando sobreviver à velocidade das esteiras, provocando riso e desespero em toda a gente. Mas então alguém revelou que o vídeo era antigo e estrangeiro, que era falso esse adendo à história, que em Vitória houve um único e bravo caranguejo. Um caranguejo só não faz uma crônica, acho. O caso é dos mais graves: os velhos ficcionistas da literatura temos perdido muito espaço para esses novos ficcionistas do real, você sabe.
— Podemos não falar mais sobre caranguejos? Na falta do presente, do passado, da notícia, será que não tem ao menos algum pensamento propício à elaboração? Não para crônica, mas para que esta entrevista não seja um fiasco completo, eu lhe peço.
— Tenho pensado naquela máxima de Adorno sobre arte e vida em sua disputa eterna. Que o homem comum tende a querer uma arte voluptuosa e uma vida ascética, quando seria muito melhor o contrário. Mas fico me perguntando onde é que o homem comum pode encontrar uma vida de volúpia, se seus dias só lhe reservam cansaço e turvação e histórias falsas? E, mesmo a arte, como a arte poderia se fazer voluptuosa se o artista já não sabe nada da vida, se passa as manhãs em diálogo surdo consigo e com seu marasmo?
Enquanto dizia essas últimas frases, o cronista se levantava e me conduzia até a porta, com passos laterais de caranguejo, e a mão gentil pousada nas minhas costas. Percebi que não diria mais nada e que era hora de me despedir, de deixá-lo a sós com seu desamparo. Mas, quando fitei pela última vez os seus olhos, notei que neles já não havia resquício nenhum do vazio, do nervosismo, da melancolia, do marasmo. Ao cronista haviam bastado as palavras que dissera naquela manhã, ainda que torpes e desalinhadas. Por ora, ele podia descansar.
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