A mãe tinha uma dívida, as filhas juntaram e criaram empresa para ajudar a pagar. É um sucesso
Licinha Duarte já vai com mais de 20 anos a vender peixe em São Nicolau e também viajava para a cidade da Praia e para o Sal, mas com o tempo fez sociedade com outra pessoa. Enviou mercadoria e nunca mais recebeu o dinheiro, acumulando uma dívida de mais de um milhão de escudos (nove mil euros) para com os pescadores locais.
As filhas, que nunca se tinham interessado por essa atividade, praticamente “acordaram” com esta dor de cabeça da mãe, que sempre queria que elas a ajudassem no negócio, e, mesmo estando longe na capital do país, tiveram de fazer algo para ajudar.
E foi assim que em 2017 nasceu a Fresk d’Gustinh, uma empresa de origem familiar que vende o peixe seco e fresco e transforma-o em hambúrgueres, bifes, almôndegas, ‘nuggets’, espetadas.
“Nós nunca quisemos entrar no negócio, por causa do sofrimento que víamos na nossa mãe, aquele stresse, mas não percebíamos, e depois já crescidas, e desta dificuldade, que vimos a oportunidade”, recorda à Lusa Simone Duarte, uma das duas filhas promotoras do projeto.
E em menos de um ano, a maior dor de cabeça da mãe deixou de existir. “Essas dívidas já foram pagas, agora, as dívidas da pandemia é que ainda não, estamos no processo de industrialização, é muita coisa nova, tudo a acontecer muito rápido”, diz a diretora-geral e administrativa da empresa.
Depois de começar de forma “muito atípica e muito caricata”, seguiu-se a formalização e dois anos depois a empresa já estava a abastecer o mercado hoteleiro em Cabo Verde e muitos restaurantes, com uma faturação de 80%.
Em 2023 veio a pandemia, mas isso significou uma nova oportunidade, uma vez que passou a oferecer soluções rápidas e práticas às donas de casa para confecionarem refeições.
“Com a pandemia, que virou tudo do avesso, foi muito decisivo para nós porque, como se costuma dizer, as dificuldades geram oportunidades, e foi exatamente na pandemia que apareceu uma grande oportunidade”, reforçou Simone Duarte, formada em engenheira mecânica, enquanto a irmã é formada em administração.
E as boas notícias não paravam de chegar, com a Fresk d’Gustinh a conseguir um financiamento da agência norte-americana USAID, através do West África Trade and Investment Hub, para expandir o negócio, com a fábrica na Praia, mas com origem em Tarrafal de São Nicolau.
“Foi uma ajuda extraordinária”, enfatizou a cofundadora da empresa familiar, em que o logótipo exibe orgulhosamente o rosto da mãe, mas o nome Gustinh é do avô, também ele homem do mar, um mestre de pesca.
“Está tudo em torno do mar, pescadores, armadores, construtores, peixeiras, e agora somos a geração que está a trabalhar para levar este setor para outro nível, a nível nacional, e acreditamos que em relativamente pouco tempo poderemos levar à escala internacional”, estimou a empresária, apontando aos mercados americano e europeu.
Neste momento, a empresa tem 36 trabalhadores, entre pescadores, pessoal de logística, de venda e de produção, que recebem o peixe fresquinho, vai passando de mão em mão até ser embalado, congelado e depois comercializado.
De acordo com a promotora, o objetivo da empresa é chegar aos 69 postos de trabalhos, apostando nas mulheres, que quer que sejam metade, e jovens.
Com três embarcações próprias em São Nicolau, parte do peixe vai diretamente para os hotéis e a outra para a capital do país para ser transformado, para depois ser fornecido também a várias superfícies comerciais na Praia.
“Aos poucos temos estado a fazer vários contactos comerciais para penetrar no mercado, sendo um produto novo, ainda por cima à base de peixe, que causa um ligeiro espanto no início, mas depois as pessoas acabam por gostar e isso é a cereja no topo do bolo”, avalia, dizendo que a mãe não poderia estar mais contente com esta ascensão meteórica das filhas nos negócios.
“A família está toda engajada e a nossa sorte, a nossa mais-valia é que sempre fomos gente do mar”, salienta, sublinhando o facto de o projeto não estar dependente de uma única espécie de peixe, tendo outras linhas de processamento, desde o congelado, ao fumado ou gourmet.
A palavra de ordem na Fresk d’Gustinh é qualidade, para pôr um produto seguro no mercado, sem químicos nem conservantes, e contornar a sazonalidade do peixe utilizando todas as espécies, para não depender de duas ou três, facilitando outros setores.
“Quando começámos em 2017, muitas pessoas só queriam comprar atum, serra ou garoupa, o esmoregal e o lobo (dourado) eram muito pouco conhecidos. E nós tivemos o trabalho de incentivar os nossos clientes e boa parte compra tudo aquilo que é espécie”, frisou a promotora, orgulhando-se desta solução amiga da empresa e do ambiente.
Até agora, a empresa já investiu mais de 80 milhões de escudos (725 mil euros), num projeto que é de 110 milhões (997 mil euros), estando atualmente a expandir a fábrica em Achada Grande Trás, para desenvolver a produção, que ronda diariamente a meia tonelada.
Ultrapassado a maior parte das “dores” nestes seis anos, a empresa olha para o futuro, mas vê outros desafios no mercado cabo-verdiano, nomeadamente a logística num país arquipelágico, mas também a cadeia de frio e conseguir levar o setor primário para “outro nível”.
“Nestes seis anos tivemos muitas dores, junto com as dores da nossa mãe fomos estudando e fomos desenhando o projeto, que não nasceu de um sonho mirabolante, foi sentindo dores, e chegámos à conclusão que era preciso ter várias soluções que fossem viáveis para o mercado, para a empresa e para as condições do país”, diz.
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