Desculpa mãe!

Desculpa mãe!

Para ti, Mãe, já será tarde, mas quando é que esta gente se liberta dos enleios ideológicos, da superficialidade, das polémicas estéreis e do acessório para se concentrarem no que verdadeiramente importa: as pessoas? 

Num país onde é raro alguém assumir as responsabilidades, em especial, no que diz desrespeito às funções do Estado, tenho de te pedir desculpa. Bem sei que já não vais a tempo de as receber de forma inteligível ou de colocar um “gosto” numa qualquer publicação das redes sociais.

Desculpa pela falta humanismo e de respostas quando elas são precisas, independentemente da condição, da idade ou de qualquer outro fator que não deveriam ser impeditivos do acesso a bem e serviços essenciais.

Foi o que fizemos quando tivemos de ir ao privado, a expensas próprias, para despistar esse cansaço que se somava à maldita insuficiência respiratória. Foi o que fizemos desde que foi detetado o tumor no cólon ascendente e sempre que no público nos diziam que algo tinha de ser feito, mas que não havia data prevista ou esta projetava-se nas calendas do horizonte, como se as mais de sete décadas de vida diminuíssem a urgência em atacar o bicho. Aconteceu contigo e acontece com demasiadas pessoas sujeitas a uma espécie de indiferença do funcionamento do sistema num ponto vital: o acesso em tempo útil a cuidados de saúde. Falta respeito pela dignidade humana.

Desculpa por não teres médico de família no Centro de Saúde do Bom Sucesso, apesar de uma doença crónica, e de, para mitigar essa falta de interlocução com o Serviço Nacional de Saúde, teres-te lançado no impulso, por influência televisiva, de te entregares a um ilusório plano de saúde da Medicare, que de quase nada servia senão para sorver dinheiro a reformados e pensionistas, como tantos outros produtos e posicionamentos comerciais que configuram um abuso das fragilidades existentes dos seres humanos. Não é o mercado a funcionar, é um abuso sobre quem é mais frágil. Uma agressividade desumana. Provavelmente para algum adicto dos algoritmos, serás menos um português sem médico de família, menos um indicador ou um encargo para a segurança social, mas para nós, além da ligação umbilical, serás sempre o que cada um é e deve ser, um ser humano. No teu caso excecional. Para os resignados, esta não passa de uma mera expressão emocional com os filtros tolhidos pelas circunstâncias da morte como se fosse possível existir uma comunidade e um país decentes que não tivessem o foco essencial das funções fundamentais centradas nas pessoas. Como se as opções e as soluções políticas não devessem ter sempre por referência as pessoas, a garantia de mínimos de dignidade humana e de direito a ser feliz, com mínimos de conforto.

Desculpa pelo funcionamento de serviços em que as pessoas não estão no centro das prioridades da organização e da construção de respostas, mesmo quando sujeitas à fragilidade da doença, empurradas para uma diversidade de serviços e localizações, gravitando em torno dos pontos de acesso aos cuidados, em vez do contrário e amiúde sem mínimos de integração e comunicação entre eles.

Desculpa pelo deslaço de atenção de uma unidade de saúde oncológica como o IPO de Lisboa em que, pela falta de integração dos serviços e perante as evidências de degradação psicológica e física, um exame ficou 15 dias na gaveta de alguém, como se informações relevantes sobre o agravamento da doença, de um quadro de marcadores tumorais a monitorizar para metástases diversas identificadas, não tivessem a obrigação de ser comunicadas à família com urgência.

E só te peço desculpa mais uma vez, porque depois destes meses de luta, de batalha à procura de respostas e contra as disfunções do sistema, esse albergue espanhol de tantos interesses desfocados, quando a doença progrediu deixaste de comer, de tomar os medicamentos e de andar, tive de me substituir ao Estado para encontrar um local privado onde existissem as condições de dignidade humana, conforto e ausência de dor que se impõem depois de uma vida dura, com dificuldades e alegrias, desde a Calhandriz a Alverca do Ribatejo, com passagens por Alhandra, pelos Casais de Santa Teresa, por Portimão e por Abrantes. Querias ficar em casa, na tua casa, na nossa casa, com o conforto e os mimos que não são substituíveis por nenhum sucedâneo, mas já não era possível. Era também esse o sentido de termos realizado quase todas as deslocações ao IPO de Lisboa em viatura própria, enfrentado o trânsito da hora de ponta, o caos do estacionamento na instituição e a necessidade de ter disponíveis sempre duas pessoas de apoio, uma para te acompanhar e a outra para se entregar às voltas no labirinto do hospital até haver um lugar para arrumar o carro.

Nesta descida ao lado negro da vida, não houve só disfunção, deslaço e indiferença, houve também humanismo e profissionais excecionais como o Dr. Nelson Serrano Marçal, pneumologista no Hospital de Vila Franca de Xira e a Dra. Ana Carla Luís, oncologista no IPO de Lisboa. São redutos preciosos do Serviço Nacional de Saúde, onde se incluem outros profissionais que colocam o ser humano no centro da função e se posicionam do lado da solução.

Bem sei que as desculpas não se pedem, evitam-se. Humildemente foi sempre o que procurei fazer. Não sei se o consegui sempre, mas sei que o meu Portugal de Abril, de quase meio século de vivência democrática, não pode ser isto para ninguém. Para ti, Mãe, já será tarde, mas quando é que esta gente se liberta dos enleios ideológicos, da superficialidade, das polémicas estéreis e do acessório para se concentrarem no que verdadeiramente importa: as pessoas? O desfoco destrói vidas e mina os pilares da vida em Democracia. Não perceber que é aqui, nas causas e nas consequências dos problemas das pessoas, que deve estar concentrada toda a energia de quem tem responsabilidades políticas públicas e de quem concretiza funções do Estado é continuar a alimentar os populismos, os extremismos e as forças radicais que bebem no descontentamento estrutural e conjuntural das pessoas e dos territórios. É deixar pessoas para trás. É mau demais.

Para ti, já será tarde. Obrigado, Mãe Belmira!

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