Como ficou a situação do trabalho escravo no Catar? País sede da Copa é alvo de denúncias de exploração
Operários caminham até o Estádio Lusail, um dos estádios da Copa do Mundo de 2022 no Catar, em foto de 2023 — Foto: Hassan Ammar/AP
O país-sede da Copa do Mundo de 2022 é uma nação relativamente nova. O Catar tornou-se independente da Inglaterra em 1971 e teve sua primeira constituição escrita em 2005.
É por isso que muitas pessoas só ouviram falar do país quando ele foi escolhido pela Fifa para receber o maior evento de futebol do mundo.
Esse rápido crescimento econômico se reflete na moderna capital Doha, no canal de notícias de alcance internacional Al Jazeera e na companhia aérea Qatar Airways.
Só que para construir tudo isso, o país, que tem uma população nativa estimada em 300 mil pessoas, teve que contar com a força de trabalho de mais de 2 milhões de imigrantes. Estrangeiros que, em muitos casos, tiveram que trabalhar em condições análogas à escravidão, segundo denúncias da Anistia Internacional, Human Rights Watch, entre outras entidades internacionais, dentro de um sistema conhecido como kafala.
O sistema kafala, que também poderia ser chamado de patrocínio, define a relação entre trabalhadores estrangeiros e seu empregador local, ou patrocinador.
Segundo o Council on Foreign Relations, grupo internacional que discute política externa, esse sistema foi criado em uma época de grande crescimento econômico, quando era preciso ter mão-de-obra barata e abundante.
As empresas ficam autorizadas pelo governo a buscar trabalhadores estrangeiros, muitas vezes por meio de agências de recrutamento. O empregador é quem cobre as despesas de viagem e oferece moradia ao imigrante.
Só que esses trabalhadores ficam presos aos seus patrocinadores. Além de começarem em dívida e ficarem dependentes da moradia oferecida, é preciso permissão se quiserem, por exemplo, tentar mudar de emprego ou simplesmente encerrar o contrato de trabalho.
Isso limita muito a liberdade do trabalhador, que acaba sendo submetido a maus tratos por conta dessa relação de domínio.
Apesar de ser conhecido como uma forma de escravidão moderna, o kafala é usado em diversos países da Península Arábica, entre eles o Catar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes.
2 de 5 Durante uma visita organizada pelo governo do Catar em 2015, o trabalhador imigrante Kuttamon Velayi, da Índia, fala com jornalistas enquanto está sentado em sua cama em um quarto que divide com outros sete trabalhadores indianos em Doha — Foto: Maya Alleruzzo/APDurante uma visita organizada pelo governo do Catar em 2015, o trabalhador imigrante Kuttamon Velayi, da Índia, fala com jornalistas enquanto está sentado em sua cama em um quarto que divide com outros sete trabalhadores indianos em Doha — Foto: Maya Alleruzzo/AP
Segundo a Anistia Internacional, não seria possível a realização da Copa do Mundo sem os mais de 2 milhões de trabalhadores imigrantes, mas o sistema baseado em patrocínio deixa o estrangeiro vulnerável a um ciclo de abusos.
Após anos de pressão por parte da Anistia e outros grupos de direitos, o Catar assinou em 2017 um acordo com a Organização Internacional do Trabalho, comprometendo-se a seguir “práticas internacionais de relações de trabalho”.
Desde então, o governo do Catar promulgou leis que beneficiam o trabalhador estrangeiro. Uma das principais mudanças foi a retirada da exigência de uma autorização para pedir demissão, possibilitando que os estrangeiros pudessem sair do país sem necessidade de avisar previamente o seu empregador.
Outra mudança é que desde 2018 os funcionários podem tentar mudar de empresa sem ter que avisar o atual empregador.
Também foram incluídas regras como salário-mínimo, limitação na jornada de trabalhadores domésticos e a instalação de um comitê para disputas trabalhistas. A criação de sindicatos, no entanto, continua proibida.
Apesar da vitória legal, a Anistia diz que as regras não estão sendo implementadas com a força ou cobrança do governo que eles esperavam.
Ainda há relatos de passaportes que são confiscados, principalmente entre trabalhadores domésticos. Além da dependência de estar empregado para ter um lugar para morar, o que tira o poder do trabalhador de reivindicar seus direitos.
Outra denúncia da Anistia é de salários atrasados ou de falta de pagamentos. Para resolver essa questão, o governo implementou um sistema eletrônico para monitorar e detectar irregularidades, que segundo a entidade, também não funciona corretamente.
No caso dos trabalhadores domésticos, muitos ouvidos pela Anistia disseram trabalhar mais de 14 horas por dia, sem nenhuma folga semanal. Além dos que declararam serem insultados, cuspidos ou agredidos fisicamente.
3 de 5 Vista do Estádio Nacional de Lusail, uma das sedes da Copa do Mundo do Catar, no dia 5 de novembro de 2022 — Foto: Kirill Kudryavtsev/AFPVista do Estádio Nacional de Lusail, uma das sedes da Copa do Mundo do Catar, no dia 5 de novembro de 2022 — Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP
A Fifa escreveu no início do mês para as seleções da Copa do Mundo pedindo que se concentrem no futebol no Catar e não deixem o esporte ser arrastado para batalhas ideológicas ou políticas.
A carta do presidente da Fifa, Gianni Infantino, e da secretária-geral da entidade, Fatma Samoura, é uma resposta não apenas a preocupações com o tratamento de trabalhadores imigrantes, mas também em relação a protestos feitos pelas seleções sobre outras questões, como direitos da comunidade LGBTQIA+.
"Sabemos que o futebol não vive em um vácuo e estamos igualmente cientes de que existem muitos desafios e dificuldades de natureza política em todo o mundo. Mas, por favor, não deixem que o futebol seja arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem", diz a carta.
Steve Cockburn, chefe de justiça econômica e social da Anistia Internacional, respondeu por meio de um comunicado.
A seleção australiana de futebol se manifestou pedindo uma posição do governo do Catar sobre direitos humanos negados e criminalização de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.
O governo holandês confirmou que enviaria uma delegação para o Catar em novembro, antes do início do evento, devido a preocupações com o tratamento dado aos trabalhadores migrantes.
A Federação Dinamarquesa de Futebol (DBU) disse que a Fifa rejeitou seu pedido de jogar com camisas com as palavras direitos humanos para todos. "Acreditamos que a mensagem é universal e não um apelo político, mas algo que todos podem apoiar", disse o executivo-chefe da DBU, Jakob Jensen, à agência de notícias Ritzau no dia 10 de novembro.
Um juiz da França colocou a Vinci Construction Grands Projets, uma unidade do grupo de construção francês Vinci, sob investigação formal no início do mês por acusações de trabalhadores migrantes no Catar, disse o grupo de direitos humanos Sherpa.
Essa decisão vem a partir de uma denúncia de 2023 apresentada pelo grupo de direitos humanos Sherpa, que tem sede em Paris, e pelo Comité contre L'esclavage Moderne (Comitê Contra a Escravidão Moderna), junto com 11 pessoas que trabalhavam para a Qatari Diar Vinci Construction, subsidiária da Vinci no Catar, na qual a empresa francesa possui uma participação de 49%.
As duas ONGs e os 11 ex-trabalhadores acusam a Vinci de "trabalho forçado" e "manter as pessoas em servidão", entre outras acusações.
Vinci disse, através de seu advogado Jean-Pierre Versini-Campinchi, que iria imediatamente recorrer da decisão. Em nota, a empresa negou as acusações, disse que sempre se preocupou com as condições dos trabalhadores e declarou que não participou das obras para a Copa do Mundo 2022.
4 de 5 Nesta foto de arquivo tirada em 24 de março de 2015, funcionários da QDVC (Qatari Diar/VINCI Construction Grands Projets), a filial do Catar da gigante francesa de construção Vinci, trabalham em um canteiro de obras na capital Doha — Foto: Karim Jaafar / Al-Watan Doha / AFPNesta foto de arquivo tirada em 24 de março de 2015, funcionários da QDVC (Qatari Diar/VINCI Construction Grands Projets), a filial do Catar da gigante francesa de construção Vinci, trabalham em um canteiro de obras na capital Doha — Foto: Karim Jaafar / Al-Watan Doha / AFP
Um levantamento feito pelo jornal britânico “The Guardian” aponta que mais de 6.500 trabalhadores estrangeiros morreram no Qatar desde que o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo em 2010.
O jornal diz que compilou documentos dos governos de Índia, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka, além de dados sobre imigrantes da embaixada do Paquistão no Catar. As informações levantadas pelo "The Guardian" não traz casos de estrangeiros de outros países.
Como esses dados não têm as funções desses trabalhadores ou local de trabalho, a reportagem ressalta que não é possível saber se todas essas mortes são diretamente relacionadas às obras para a Copa.
No entanto, eles relatam que foram confirmadas 37 mortes ligadas a construções de estádios.
Já um relatório do Equidem, grupo com sede em Londres que tem como objetivo expor casos de injustiça humana em todo o mundo, diz que os estrangeiros no Catar trabalharam sob condições severas e foram submetidos a discriminação, roubo de salários e outros abusos.
Equidem diz que entrevistou 60 trabalhadores durante um período de dois anos, que estavam diretamente envolvidos nas construções dos estádios. Todos eles falaram com o grupo sob condição de anonimato, temendo retaliação.
Os trabalhadores falaram sobre taxas ilegais de recrutamento que os deixavam profundamente endividados antes mesmo de começarem, longas horas de trabalho sob condições severas, discriminação baseada em nacionalidade, na qual o trabalho mais perigoso era reservado para africanos e sul-asiáticos, salários não pagos e violência verbal e física.
Namrata Raju, diretora da Equidem na Índia e pesquisadora principal do relatório, disse que os fãs precisam saber como a infraestrutura para o evento foi construída.
5 de 5 Emir do Catar Tamim bin Hamad Al Thani participa de uma reunião com o presidente do Irã Ebrahim Raisi (que não aparece na foto) no Cazaquistão, em 13 de outubro de 2022 — Foto: Presidente do Irã/WANA via Reuters
Emir do Catar Tamim bin Hamad Al Thani participa de uma reunião com o presidente do Irã Ebrahim Raisi (que não aparece na foto) no Cazaquistão, em 13 de outubro de 2022 — Foto: Presidente do Irã/WANA via Reuters
Por meio de um comunicado, o Comitê Supremo para Entrega e Legado do Catar (SC), um órgão governamental catariano responsável pela Copa do Mundo, disse que o relatório da Equidem contém informações imprecisas e deturpadas e que, a partir de 2014, o país adotou medidas para melhorar as condições dos trabalhadores.
Eles confirmam por meio de nota que houve 3 mortes relacionadas ao trabalho e 37 mortes indiretamente relacionadas.
“O SC investiga todas as mortes não relacionadas ao trabalho e fatalidades relacionadas ao trabalho, de acordo com nosso Procedimento de Investigação de Incidentes para identificar fatores contributivos e estabelecer como eles poderiam ter sido evitados. Esse processo envolve coleta e análise de provas e entrevistas com testemunhas para apurar os fatos do incidente”, diz a nota
O Catar também rejeitou os pedidos da Anistia e da Human Rights Watch para criar um fundo de indenização para os trabalhadores mortos ou feridos nos preparativos da Copa do Mundo de futebol.
"Este pedido (...) de uma campanha de indenização é uma estratégia de comunicação", disse o ministro do Trabalho Ali bin Samij Al-Marri em entrevista à agência de notícias France Presse. "Cada morte é uma tragédia", declarou, acrescentando, porém, que "não há critérios para criar esses fundos".
A Fifa, quando questionada sobre questões trabalhistas pela agência de notícias France Presse, respondeu que "as medidas para garantir a saúde e o bem-estar dos trabalhadores (que trabalhavam nos canteiros de obras) na Copa do Mundo foram prioritárias".
A Anistia Internacional pediu novamente nesta sexta-feira (11), em uma coluna publicada no jornal francês "Le Monde", que o presidente da FIFA, Gianni Infantino, atribua uma indenização financeira aos trabalhadores migrantes que construíram os estádios da Copa do Mundo no Catar.
Nove dias antes do início do torneio, a entidade renova um pedido que já havia feito em maio junto com outros 24 grupos, como a Human Rights Watch, para reparar os abusos sofridos, segundo eles, principalmente pelos trabalhadores procedentes do subcontinente indiano e da África.
A Fifa deveria reservar um mínimo de 420 milhões de euros (cerca de R$ 2,3 bilhões) para essa indenização, escreveu a Anistia em comunicado.
Em uma declaração conjunta, 10 países europeus, membros do Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos e Trabalhistas da UEFA, pressionaram a Fifa por uma resposta definitiva sobre um fundo de compensação para trabalhadores e a criação de um centro de trabalhadores migrantes em Doha.
"A FIFA se comprometeu repetidamente a fornecer respostas concretas sobre essas questões - o fundo de compensação para os trabalhadores migrantes e o conceito de um centro de trabalhadores migrantes a ser criado em Doha - e continuaremos a pressionar para que elas sejam entregues", lê-se no comunicado.
O grupo da UEFA é composto por 10 nações: Inglaterra, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça e País de Gales. Dessas, 8 irão participar da competição.
Os capitães dessas oito equipes que jogarão na Copa se comprometeram a usar braçadeiras escrito One Love (Um Amor), o que é uma violação das regras da FIFA.
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