Por que preço da gasolina se tornou impasse para Lula no início do governo
Carro é abastecido — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil via BBC
O preço dos combustíveis se tornou um dos primeiros grandes impasses do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em aberto, estão questões como o futuro dos impostos sobre a gasolina e o etanol — reduzidos por Jair Bolsonaro (PL) em 2022, durante sua tentativa de reeleição, e cuja desoneração foi mantida por 60 dias pelo novo governo —, a política de preços da Petrobras e como irá prosseguir a venda das refinarias da estatal, determinada em acordo entre a empresa e o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão responsável pela defesa da livre concorrência).
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O mercado financeiro e o setor energético aguardam essas definições pelo governo com apreensão, diante do histórico de controle de preços durante o governo Dilma Rousseff e da perspectiva estatizante do PT com relação ao setor petrolífero.
Para a população em geral, o tema também é sensível, já que o preço dos combustíveis tem impacto relevante sobre a inflação — o diesel afeta os custos do transporte público e de diversas cadeias produtivas devido ao custo de frete, e a gasolina e o etanol também pesam no bolso das famílias que utilizam veículos particulares, além dos motoristas autônomos.
A questão também é politicamente sensível, diante das ameaças constantes de paralisação de caminhoneiros — uma questão ainda mais delicada após os atos de vandalismo registrados em Brasília por apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.
Entenda por que o preço dos combustíveis se tornou um impasse para Lula no início do governo e o que pode vir pela frente.
2 de 5 Estudo da UFRJ estimou em R$ 98 bilhões as perdas da Petrobras com a venda de combustíveis a preço abaixo da referência internacional entre 2011 e 2014, durante o governo Dilma — Foto: AFP via BBC
Estudo da UFRJ estimou em R$ 98 bilhões as perdas da Petrobras com a venda de combustíveis a preço abaixo da referência internacional entre 2011 e 2014, durante o governo Dilma — Foto: AFP via BBC
Para entender por que o preço dos combustíveis é um tema tão delicado para o novo governo, é preciso voltar às gestões petistas passadas. Particularmente, aos governos de Dilma Rousseff.
Para conter a inflação, Dilma controlou alguns preços regulados pela União — os chamados preços administrados —, como energia elétrica, combustíveis e tarifas de transporte público.
Um estudo da UFRJ de 2015 estimou em R$ 98 bilhões as perdas de receita da Petrobras com a venda de derivados a preço inferior ao de referência internacional entre 2011 e 2014.
"Essa política aumentou a dívida e comprometeu a capacidade de investimento da Petrobras", lembra Heitor Paiva, analista de energia e macroeconomia da HedgePoint Global Markets.
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Em 2017, a Organização Mundial do Comércio (OMC) chegou a apontar a Petrobras como a empresa petrolífera mais endividada do mundo, com uma dívida à época de US$ 125 bilhões — R$ 387 bilhões ao câmbio de então.
Além dos efeitos para a empresa, a política de controle de preços tem outros impactos negativos, diz Paiva.
O primeiro deles é que a venda de combustíveis abaixo da paridade internacional inibe a importação de derivados por outras empresas — um problema relevante, já que o país importa entre 25% e 30% do diesel consumido internamente.
Outra questão é que, quando há paridade internacional, o preço acaba servindo como um sinal para os consumidores sobre as condições de oferta — ou seja, quando há menos produto disponível, o preço sobe e vice-versa. Sem essa referência e com a dificuldade de importação privada, o controle de preços pode levar à escassez de combustíveis no mercado interno.
"Isso também mantém as expectativas de inflação em alta, porque os agentes esperam que em algum momento o reajuste virá. Então não adianta controlar artificialmente a inflação corrente, porque as expectativas continuam contaminadas."
Em resposta a esses problemas, a Petrobras passou a adotar em 2016 o chamado preço de paridade internacional (PPI). Nesse modelo, o preço dos combustíveis no mercado interno varia de acordo com a cotação internacional do barril do petróleo e do câmbio.
Também no governo de Michel Temer (MDB), a empresa iniciou um programa de desinvestimento do setor de refino, com o objetivo de se concentrar na exploração do petróleo.
Já no governo Temer, essa volatilidade teve um desdobramento dramático: a greve de caminhoneiros de 2018, que durou 10 dias e gerou prejuízos bilionários à economia.
3 de 5 Greve de caminhoneiros em 2018 foi uma reação à volatilidade do preço do diesel após adoção do PPI pela Petrobras — Foto: Agência Brasil via BBCGreve de caminhoneiros em 2018 foi uma reação à volatilidade do preço do diesel após adoção do PPI pela Petrobras — Foto: Agência Brasil via BBC
No governo Bolsonaro, foram mantidas as políticas de paridade internacional e do desinvestimento no refino. Mas, no meio do caminho, houve a crise energética provocada pela guerra na Ucrânia.
Pressionado pela alta dos combustíveis em ano de eleição, Bolsonaro interveio nos preços desonerando os impostos federais sobre combustíveis (PIS, Cofins e Cide) e aprovando uma lei que passou a considerar esses produtos como itens essenciais, o que limitou a cobrança de ICMS pelos Estados a uma faixa de 17% a 18%.
A Petrobras também passou a reajustar os combustíveis com menos frequência no período pré-eleitoral.
O corte de tributos ajudou a conter a inflação brasileira, de 10% no acumulado de 12 meses até julho de 2022, para 5,8% em dezembro. Mas deixou um grande problema para o novo governo, já que a isenção de impostos federais tinha validade apenas até 31 de dezembro. Assim, se nada fosse feito, o terceiro mandato de Lula iria começar já com aumento dos combustíveis.
Além dessa questão dos impostos, durante a campanha eleitoral, Lula deu diversas declarações defendendo "abrasileirar" o preço dos combustíveis. Isso criou um temor no mercado de que a intenção do petista seria acabar com o PPI e retomar investimentos em refino.
"A Petrobras é uma empresa brasileira, o petróleo está no solo brasileiro, as plataformas somos nós que fazemos. Por que a gente tem que cobrar em dólar? Se a gente ganhar as eleições, a gente vai abrasileirar os preços da Petrobras", disse Lula em peça publicitária de sua campanha.
4 de 5 Durante a campanha eleitoral, Lula deu diversas declarações defendendo 'abrasileirar' o preço dos combustíveis — Foto: Reprodução via BBCDurante a campanha eleitoral, Lula deu diversas declarações defendendo 'abrasileirar' o preço dos combustíveis — Foto: Reprodução via BBC
Escolhido para ministro da Fazenda e com a espinhosa missão de reequilibrar as contas públicas brasileiras, Fernando Haddad pediu em dezembro ao governo Bolsonaro que não prorrogasse a desoneração de impostos sobre combustíveis.
A ala política do novo governo, no entanto, avaliou que seria negativo um aumento de combustíveis logo no começo do mandato.
Haddad foi voto vencido e o governo Lula prorrogou a desoneração dos impostos federais sobre álcool e gasolina por 60 dias e sobre o diesel, biodiesel, gás natural e gás de cozinha até 31 de dezembro de 2023.
A derrota de Haddad nessa disputa aumentou a preocupação do mercado com a saúde das contas públicas e gerou dúvidas sobre se ele terá força para fazer o ajuste fiscal necessário para estabilizar a trajetória da dívida brasileira.
5 de 5 Haddad defendia o fim da desoneração dos combustíveis, mas foi vencido por ala política que temia o desgaste de uma alta de preços no início de mandato — Foto: AFP via BBCHaddad defendia o fim da desoneração dos combustíveis, mas foi vencido por ala política que temia o desgaste de uma alta de preços no início de mandato — Foto: AFP via BBC
Além do efeito negativo para o quadro fiscal, a prorrogação da desoneração também mantém as expectativas de inflação elevadas, já que o desequilíbrio das contas públicas afeta o câmbio, o que pesa sobre todos os custos importados do setor produtivo. Além disso, o mercado espera que esse corte de impostos vá ser revertido em algum momento à frente.
Assim, com a prorrogação da desoneração, o governo garante uma inflação menor no curto prazo, mas pode acabar gerando inflação maior à frente.
"Existe uma preocupação do governo com aumento de preços logo no início do mandato, uma preocupação com popularidade. Mas é uma decisão equivocada deixar de ter essa arrecadação quando o próprio governo começa o ano ampliando benefícios."
Após ganhar tempo com a prorrogação da desoneração da gasolina e do etanol até fevereiro e do diesel e gás de cozinha até dezembro, o terceiro mandato de Lula ainda tem muitas perguntas sem resposta para o mercado de combustíveis.
A primeira delas é o futuro da tributação federal sobre a gasolina e o etanol após 28 de fevereiro.
Outra dúvida é se a gasolina vai perder o caráter de essencialidade, o que poderia elevar a cobrança de ICMS pelos Estados sobre o combustível.
Isso porque, em dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou acordo entre Estados, Distrito Federal e União mantendo a essencialidade do diesel, gás natural e gás de cozinha, o que limita a cobrança do ICMS sobre esses itens a faixa entre 17% e 18%. Mas, na ocasião, não houve consenso sobre a essencialidade da gasolina, discussão que deverá ser retomada.
Uma terceira incógnita é qual será a política de preços da Petrobras, o que só deverá ser definido quando o senador Jean Paul Prates (PT) assumir a presidência da empresa.
Prates gerou alívio no mercado ao declarar que a mudança na política de preços de combustíveis não deve envolver nenhum tipo de intervenção direta no mercado.
Ele também afirmou que o cálculo para o reajuste de preços continuará em linha com o mercado internacional — mas não seguirá mais o PPI, implementado durante o governo Temer.
No mercado, segundo o jornal Valor Econômico, há expectativa de que o novo governo possa optar por modelo semelhante ao de projeto de lei (PL 1472/21) aprovado no Senado e relatado por Prates, que prevê a criação de uma banda de preços para os combustíveis regulada pelo Executivo, acompanhada de um Fundo de Estabilização, para mitigar variações bruscas de preço ao consumidor.
"As bandas talvez funcionem, reduzindo um pouco da volatilidade para o consumidor final, mas o risco é acabar postergando reajustes e onerando a Petrobras em momento de alta de custos. Então precisamos aguardar para ver quais vão ser essas propostas e como isso vai ser debatido dentro da Petrobras. Me parece que há uma resistência também dentro da própria empresa em efetuar mudanças na política de preços, como vimos no governo Bolsonaro."
Por fim, uma última incógnita é o que acontecerá com as refinarias da empresa.
Em 2023, a estatal e o Cade firmaram um acordo para a venda de oito das 13 refinarias da Petrobras, o que reduziria a participação da companhia no mercado a cerca de 50% — hoje ela detém 98% do mercado, segundo o órgão de defesa da concorrência.
O prazo para o desinvestimento era 2023, mas até agora a Petrobras só conseguiu vender duas refinarias, uma no Amazonas e outra na Bahia. Conforme reportagem da Folha de S.Paulo, se interromper o processo de venda, a empresa poderá ser condenada no Cade por abuso de poder econômico, além de sofrer multa pesada e desgaste para a imagem da companhia.
Assim, conforme o jornal, Prates estaria estudando alternativas. Uma opção seria vender as refinarias, e com o dinheiro arrecadado, construir novas unidades. Isso garantiria o cumprimento do acordo e o aumento dos investimentos no setor, como deseja o governo.
Mas pode causar descontentamento entre os investidores da Petrobras, já que o investimento em refino é caro e implicaria num aumento do endividamento da estatal — e a memória ainda está fresca do tempo em que ela foi a petrolífera mais endividada do mundo e dos investimentos malsucedidos que vieram à tona com a Operação Lava Jato.
Embora a tarefa do governo pela frente seja árdua, o cenário global deve trazer algum alívio para que essas discussões sejam feitas, avalia a economista-chefe do Banco Inter.
"Essa é uma boa notícia", diz Rafaela Vitória. "Os preços futuros do petróleo estão num patamar bem comportado. Temos uma expectativa de barril a US$ 90, mais alto do que atualmente [o Brent anda próximo dos US$ 80], mas abaixo da média do ano passado, que foi em torno de US$ 100. Então os preços dos combustíveis não deve ser problema para esse ano."
Heitor Paiva, da HedgePoint, é um pouco mais cauteloso.
"Mas, ao mesmo tempo que isso está acontecendo, temos a China voltando para o mercado e a China demanda muito petróleo, então ela pode acabar compensando a queda de demanda no Ocidente, fazendo com que os estoques internacionais fiquem apertados. Então isso pode fazer com que, a partir do verão no hemisfério Norte — junho, julho —, os preços fiquem mais altos. Por isso há analistas que ainda acreditam no petróleo acima de US$ 100."
O analista destaca ainda a continuidade da guerra na Ucrânia e novos embargos que entrarão em vigor esse ano.
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