Residencial Cambridge: 11 anos após ocupação, antigo hotel de luxo no Centro de SP vira conjunto de moradias populares
Onze anos depois de ter sido ocupado por movimentos sociais, o edifício que abrigou o luxuoso Hotel Cambridge, no Centro de São Paulo, se tornou um condomínio de moradias populares com 121 apartamentos.
O prédio que, no início dos anos 2000, ficou conhecido por abrigar concorridas festas temáticas da noite paulistana é o mesmo que agora preserva, em sua versão residencial, aspectos originais da histórica construção de 17 andares, dois elevadores e área de lazer.
💥️Nesta reportagem, você vai ler sobre:
💥️Veja, abaixo, um breve histórico do prédio do Hotel Cambridge:
💥️O Residencial Cambridge, após a reforma, tem:
O 💥️g1 esteve no local e conversou com alguns dos novos moradores, como a agente socioeducativa Vanessa Serra, de 27 anos. Primeira da família a ter uma casa própria, ela conta que parentes viam a ocupação como coisa de "vândalos" e "vagabundos".
"Somos trabalhadores, somos lutadores. E está aqui a prova de que a gente luta para ter o que é nosso, não para tirar de ninguém", diz Vanessa.
O Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), que coordenava a ocupação, sob a liderança de Carmen da Silva Ferreira, ficou responsável por contratar a construtora, acompanhar as obras e fazer o trabalho técnico-social com as famílias.
As obras tiveram início em 2018, quando as cerca de 120 famílias que ocupavam o antigo hotel tiveram de deixá-lo e ir em busca de lugares temporários para ficar. Algumas foram viver de aluguel, outras, na casa de parentes. A grande maioria, porém, se dividiu em outras ocupações do MSTC.
Para preservar a história e as memórias do Hotel Cambridge, a reforma foi realizada com a técnica , utilizada na restauração de prédios antigos, que mantém a arquitetura original do local, ao mesmo tempo em que promove adequações à legislação vigente.
Um exemplo disso são as escadas de mármore. Embora elas tenham sido mantidas, itens como corrimãos, iluminação e sinalização de emergência foram adicionados. Veja, abaixo, a comparação entre duas imagens: uma registrada pelo 💥️g1💥️ em 2012, após a ocupação, e outra em 2023, depois da entrega dos apartamentos.
1 de 10 Escada de mármore preservada no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Escada de mármore preservada no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
De acordo com a Caixa, o valor investido pela União na construção foi de 💥️R$ 14,1 milhões. Carmen da Silva Ferreira afirma que a quantia não acompanhou a inflação registrada ao longo do período de reforma e que a alta no preço dos materiais de construção teve de ser bancada pelos próprios moradores.
Os novos proprietários viviam em ocupações do MSTC – muitos na do Cambridge – e estavam inscritos em programas habitacionais do município de São Paulo.
Segundo a coordenadora do movimento, a seleção das famílias que seriam beneficiadas com as unidades habitacionais foi feita com base em critérios do próprio MSTC (como envolvimento na luta por moradia) e da Caixa (como faixa de renda, documentação em dia e ausência de dívidas com bancos públicos).
A síndica do condomínio, Romenia Malaquias de Freitas, diz que os moradores tiveram participação ativa no processo. Para a escolha de materiais, por exemplo, três opções eram levadas em assembleia, e prevalecia a vontade da maioria.
Logo na entrada, no saguão onde ficava o bar do Cambridge, uma parede de pedras contrasta com a simplicidade do branco uniforme que cobre as demais. Ali, há dois vasos de plantas, além de um sofá e de uma mesinha marrons.
No térreo, há uma sala para a síndica, enfermaria, bicicletário e refeitório para os funcionários do condomínio. Também há contêineres para coleta seletiva – algo que tem sido trabalhado com os moradores – e espaço para a plantação de uma horta, o que Carmen, líder do MSTC, pretende fazer em breve.
2 de 10 Hall de entrada e mezanino do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Hall de entrada e mezanino do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
No andar de cima, o mezanino, uma brinquedoteca está sendo montada, aos poucos, com doações de livros e brinquedos.
A laje do prédio é dividida em duas partes, uma voltada para a Av. 9 de Julho e outra para a R. Álvaro de Carvalho – ambas serão dedicadas ao lazer dos condôminos.
3 de 10 Laje do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Laje do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
Num lado, pretendem fazer um pequeno salão de festas e instalar um chuveirão para que as pessoas se refresquem durante o calor; do outro, um espaço para churrasqueira e forno de pizza. Mas esses são planos futuros, uma vez que ainda é necessário arrecadar a verba que será destinada para colocar tais ideias em prática.
Os 121 apartamentos estão localizados entre o 1° e o 14° andar do edifício. Desses, 85 são do tipo quitinete (com banheiro, cozinha e um cômodo que funciona como quarto e sala) e 36 são de um ou dois dormitórios. Todas as unidades foram equipadas com tanque de lavar roupa, box de banheiro, pias, torneiras, venezianas e tela de proteção nas janelas. O piso original de taco de madeira foi mantido.
4 de 10 Piso de taco de madeira original mantido após a reforma do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Piso de taco de madeira original mantido após a reforma do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
Apartamentos que de numeração com final 5 de cada andar são adaptados para pessoas com deficiência. Nessas unidades, por exemplo, o tamanho das portas é maior e há barras de apoio no banheiro. Caso não haja PCDs na família a que foi atribuída a uma dessas unidades, os equipamentos de acessibilidade podem ser removidos.
Todos os 17 andares do prédio (térreo, mezanino, residenciais e laje) têm câmeras de segurança, alarmes de incêndio, extintores e mangueiras de combate às chamas, e sinalização de emergência. Carmen, a líder do movimento, se orgulha ao falar sobre o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) obtido pelo edifício.
5 de 10 Câmera de segurança instalada no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Câmera de segurança instalada no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
Os elevadores são itens valorizados pelos moradores. Em 2012, quando ocuparam o prédio, havia três equipamentos do tipo, mas nenhum deles funcionava. Romenia, a síndica, conta que chegou a morar no 13º andar e quando precisava buscar algo no térreo, brincava dizendo "eu vou, só não garanto que volto em cinco minutos", já que precisava descer e subir de escada.
Atualmente, o condomínio tem dois elevadores em funcionamento. Segundo Carmen, esses foram os primeiros itens adquiridos na obra.
A diarista 💥️Maria Auxiliadora de Siqueira Silva, de 58 anos, estava há 14 anos na espera por uma moradia, período no qual viveu entre ocupações e pagamento de aluguéis. Participante ativa nas assembleias e demais atividades do MSTC, ela conta que chegou a ouvir de parentes que "aquilo tudo era coisa para desocupado, como ela". Até o próprio marido a desencorajava.
Com o contrato da casa própria assinado, Maria agora sorri. Mas depois fica com a expressão mais séria ao relembrar a luta que antecedeu o momento atual. Ela diz que, apesar de ter enfrentado muitos desafios, faria tudo de novo.
6 de 10 Maria Auxiliadora em seu apartamento no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Maria Auxiliadora em seu apartamento no Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
💥️Selma de Jesus Oliveira, de 48 anos, é costureira e tem uma barraca de acarajé que arranca elogios de seus conhecidos. Residente na então Ocupação Hotel Cambridge e atual proprietária de um dos apartamentos do residencial, ela fala com orgulho sobre a conquista da casa própria, que, no quesito emoção, perde só para o nascimento do primeiro filho.
7 de 10 Selma Oliveira em frente ao Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
Selma Oliveira em frente ao Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
"Eu posso levar para a história e mais tarde, lá velhinha, contar para os meus netos, meus bisnetos: 'Olha, eu entrei numa luta de moradia que ninguém dizia que ia dar certo, ninguém tinha uma certeza'. Vários desistiram, foram embora e hoje muitos deles se arrependem", disse a costureira.
No 13° andar do edifício mora a agente socioeducativa 💥️Vanessa Serra, de 27 anos. Primeira da família a conquistar a casa própria, ela diz que a ficha ainda não caiu. Ela conta que seus parentes tinham uma visão distorcida da ocupação, que viam o movimento como coisa de "vândalos" e "vagabundos", mas que agora pode mostrar sua legitimidade.
8 de 10 Vanessa Serra, moradora do Residencial Cambridge, emocionada ao falar sobre conquista da casa própria — Foto: Renata Bitar/g1
Vanessa Serra, moradora do Residencial Cambridge, emocionada ao falar sobre conquista da casa própria — Foto: Renata Bitar/g1
A jovem moradora se emociona ao falar do orgulho que é ter um lar para chamar de seu, uma cama na qual colocar a filha pequena para dormir. Ela também comenta o alívio que é não ter de se preocupar com risco de despejo. Porém, mesmo com seu teto garantido, Vanessa diz que seguirá na luta por moradias populares.
"A luta não é sozinha, é uma luta coletiva. Não é porque a gente recebeu a nossa moradia que a gente para a luta. A luta não é isso. O movimento, o que ele constrói, é uma luta contínua para ajudar outras pessoas que estão nesse processo", afirmou a agente socioeducativa.
A transformação da chamada "vida em ocupação" para a "vida em condomínio" tem sido trabalhada com os moradores pela assistente social do MSTC, Márcia de Fátima Araújo.
Desde o período da reforma, ela tenta conscientizar os novos proprietários quanto aos gastos individualizados com água, luz, gás e internet, assim como as questões da geração de renda, planejamento financeiro e endividamento. "Essa família tem que ter autonomia", disse Márcia. "Não dá para fantasiar que vai ser de graça."
9 de 10 Márcia Araújo, Carmen Silva e Romenia Malaquias (da esquerda para a direita) na laje do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1Márcia Araújo, Carmen Silva e Romenia Malaquias (da esquerda para a direita) na laje do Residencial Cambridge — Foto: Renata Bitar/g1
Segundo Carmen, a individualização foi priorizada nesta nova etapa para garantir a autonomia de cada núcleo familiar.
Inaugurado na década de 1950, o Cambridge era composto por 119 acomodações de luxo, nas quais se hospedaram artistas internacionais. Funcionou como hotel até 2002, deixando aberto somente o bar, onde eram realizadas festas temáticas. Em 2004, o lugar foi à falência, e o edifício acabou abandonado.
Com dívidas de IPTU, os proprietários tiveram o prédio desapropriado pela Prefeitura de São Paulo, em 2011, por cerca de R$ 6,5 milhões.
Durante a ocupação, o movimento foi alvo de inquérito policial e denúncia do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) após ex-membros terem acusado a liderança de praticar extorsão contra os moradores do prédio.
O caso foi arquivado em 2023 pela Justiça, que considerou as provas conflitantes e insuficientes.
10 de 10 Entrada da ocupação, no Centro de São Paulo — Foto: Marcelo Brandt/g1Entrada da ocupação, no Centro de São Paulo — Foto: Marcelo Brandt/g1
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