Por que governo Bolsonaro é investigado por suspeita de genocídio contra os Yanomami

PF vai investigar se houve omissão de agentes públicos no território yanomami durante governo Bolsonaro — Foto: Brendan Smialowski/AFP 1 de 4 PF vai investigar se houve omissão de agentes públicos no território yanomami durante governo Bolsonaro — Foto: Brendan Smialowski/AFP

PF vai investigar se houve omissão de agentes públicos no território yanomami durante governo Bolsonaro — Foto: Brendan Smialowski/AFP

A Polícia Federal anunciou a abertura de um inquérito para investigar se houve crime de genocídio e omissão de socorro ao povo Yanomami pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).

A investigação vai começar após um pedido feito por Flávio Dino, ministro da Justiça e da Segurança Pública, um dos integrantes da comitiva que visitou o território indígena no dia 21 de janeiro.

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Outras duas denúncias estão em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Países Baixos. Nelas, a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genocídio durante a pandemia de Covid-19 e na forma como ele lidou com a proteção dos indígenas nos últimos quatro anos.

Procurado pela reportagem, Bolsonaro não comentou o tema. Antes, Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a denúncia sobre a crise yanomami era "farsa da esquerda" e argumentou que seu governo levou atenção especializada para territórios indígenas.

Quais são os argumentos que fundamentam acusações tão graves? E o que mais disse Bolsonaro?

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Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que há elementos suficientes para iniciar uma investigação, mas que é preciso encontrar evidências e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro. A seguir, entenda como, segundo eles, questões como estímulo ao garimpo, apuração sobre desvio de medicamentos e alertas ignorados pelo governo podem ser levados em consideração.

O Tribunal Penal Internacional diz que o genocídio é caracterizado pela "intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição física total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo para outro".

A jurista Sylvia Steiner, única brasileira que foi juíza da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genocídio não é qualquer matança".

"Tem que existir a intenção de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da raça ou da religião dele", resume.

A especialista também aponta que há uma diferença entre genocídio e crimes contra a humanidade.

"Crimes contra a humanidade são aqueles praticados por parte de uma política de um Estado ou de uma organização que atacam a população civil. Eles incluem assassinato, violência sexual, deportação forçada, perseguição, extermínio, escravidão…", lista.

"Nesse caso, não existe um dolo especial, ou seja, a intenção clara de eliminar um grupo por questões como nacionalidade, etnia, raça, religião", complementa.

Localizado em Haia, o Tribunal Penal Internacional julga casos de genocídio e crimes contra a humanidade — Foto: Getty Images 2 de 4 Localizado em Haia, o Tribunal Penal Internacional julga casos de genocídio e crimes contra a humanidade — Foto: Getty Images

Localizado em Haia, o Tribunal Penal Internacional julga casos de genocídio e crimes contra a humanidade — Foto: Getty Images

O advogado Belisário dos Santos Junior, da Comissão Internacional de Juristas, lembra que o Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956.

"Ela foi aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação ao genocídio", diz.

A lei brasileira, portanto, também pune aqueles que estimulam "direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes" relacionados ao genocídio.

Mas o que pode pesar contra o governo Bolsonaro durante as investigações?

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região, que compreende a maior reserva indígena do país.

"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2023 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.

O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. "Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2023 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.

Mineração e falta de políticas públicas representam ameaças aos povos indígenas, defende corte internacional — Foto: Getty Images 3 de 4 Mineração e falta de políticas públicas representam ameaças aos povos indígenas, defende corte internacional — Foto: Getty Images

Mineração e falta de políticas públicas representam ameaças aos povos indígenas, defende corte internacional — Foto: Getty Images

Durante os quatro anos de presidência, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a mineração em terras indígenas — o governo propôs inclusive um projeto de lei que viabilizaria a prática dentro da lei.

Em março de 2022, por exemplo, ele afirmou que "índio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, não só para agricultura, mas também para garimpo".

"A Amazônia é uma área riquíssima. Em Roraima, há uma tabela periódica debaixo da terra", acrescentou.

Santos Junior, que integra a Comissão Arns, entende que são vários os exemplos do estímulo de Bolsonaro ao garimpo.

"Os garimpeiros vão se apropriando das áreas, desmatam a floresta, invadem unidades básicas de saúde… Quem dá suporte a isso é justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem não dá as condições para que povos e etnias sobrevivam", defende.

O Ministério Público Federal também fez operações para apurar desvios de medicamentos em território yanomami.

Segundo o órgão, só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022.

Os procuradores dizem que o desvio de vermífugos (que tratam de infestações de vermes) impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crianças que vivem nesta região.

Há ainda denúncias sobre a interrupção no fornecimento de alimentos.

Alisson Marugal, procurador da República em Roraima, afirmou que o Ministério da Saúde cortou o fornecimento de alimentação aos indígenas nos postos de saúde do Estado em 2023, sem dar explicações.

Todo o cenário de casos e mortes por desnutrição e malária fez com que o Ministério da Saúde decretasse uma emergência sanitária no território yanomami em 21 de janeiro.

Entre as ações emergenciais, o governo anunciou o envio de profissionais de saúde e a criação de hospitais de campanha para atender os pacientes.

Segundo o secretário de Saúde Indígena do ministério, Ricardo Weibe Tapeba, mais de mil indivíduos já foram resgatados em situação de extrema vulnerabilidade do local.

Por fim, diversas instituições nacionais e internacionais chamaram a atenção para o que vinha acontecendo com os yanomami nos últimos meses e anos.

Em nota, a Apib disse que a invasão do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes à justiça e aos órgãos do governo durante a gestão de Bolsonaro.

Existe também uma petição feita ao Supremo Tribunal Federal em maio do ano passado sobre esse assunto. Nela, a Apib e outras entidades pedem ações do governo para conter a invasão de garimpeiros nas terras onde vivem os yanomami e outros povos, como os Munduruku.

No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas Yanomami, Ye'kwana e Munduruku".

A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de "extrema gravidade e urgência".

Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável" desses povos.

A corte pediu ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualizações sobre o caso deveriam ser enviadas a cada três meses.

A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o país estava cumprindo as medidas.

Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, "até o dia de hoje, a corte está esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".

Para Santos Junior, "o ex-presidente, por causa de suas obsessões [com o garimpo], aparenta preencher os requisitos de quem assume os riscos". "Não é normal você deixar um povo sem assistência médica, sem as condições mínimas de sobrevivência", diz.

"Os indígenas foram sufocados de uma tal forma que as mortes e a redução do grupo se encaixam, a meu ver, na descrição do genocídio pelas ações ou inações do então Presidente da República", acrescenta o advogado.

A jurista Sylvia Steiner pondera que a abertura de um inquérito serve justamente para fazer investigações e reunir provas de possíveis crimes que foram eventualmente cometidos.

"Por ora, não há fatos provados. Existem alguns indícios em relação ao genocídio. E isso é sempre complicado, porque você precisa comprovar que havia uma intenção de eliminar os Yanomami da face da Terra", explica.

Na visão da jurista, outra possibilidade é investigar possíveis crimes contra a humanidade — e não o genocídio.

"Pode ser observada a existência de um plano, de uma política de Estado contra os yanomami, mas em função da terra que eles ocupam e do interesse em se apropriar das riquezas que existem ali. Ou seja, nesse caso não falamos de uma perseguição dos yanomami por causa da etnia deles", pontua.

"Acontece que essa política de Estado leva à exterminação do grupo. Então, nós podemos estar diante de um crime contra a humanidade de extermínio ou perseguição", completa.

Steiner chama a atenção para o fato de a legislação brasileira não prever crimes contra a humanidade. Nesse caso, a eventual investigação e um julgamento posterior dependem da ação do Tribunal Penal Internacional.

A especialista aponta que esses julgamentos em Haia, de possíveis responsáveis pelos atos criminosos, podem render penas de até 30 anos ou prisão perpétua em casos extremos.

Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal — Foto: Getty Images 4 de 4 Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal — Foto: Getty Images

Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal — Foto: Getty Images

Steiner aponta que o conceito de genocídio e crimes contra a humanidade é alvo de muitas discussões entre os juristas.

"Uma parcela acredita que, decorrido tanto tempo desde que o conceito foi definido nos anos 1940, é preciso ter um entendimento um pouco mais alargado do que é um genocídio. Eles argumentam que o mundo mudou e a interpretação desse crime deveria ser mais flexível", diz

"Eu me situo entre aqueles que seguem a letra da lei. Então, para mim, tem que ficar demonstrado que realmente houve a intenção genocida, a intenção de destruir no todo ou em parte aquela comunidade, seja em razão da religião, da etnia, da raça ou na nacionalidade."

"Fora disso, pode ser que estejamos diante de um crime contra a humanidade, que é tão grave quanto", complementa.

De acordo com a especialista, o conceito de crimes contra a humanidade é relativamente novo — foi ratificado internacionalmente a partir do Estatuto de Roma em 2002 — e, por isso, ainda gera confusão.

"Esse conjunto de normas está acima das regras dos países e proíbe uma série de condutas que põe em risco a paz e a humanidade de comunidades inteiras", conta Steiner.

"Quando temos escândalos lamentáveis e catástrofes humanitárias, devemos usar esse momento para progredir do ponto de vista moral e ético. Que a atual situação desperte as pessoas e os países para as necessidades especiais das populações indígenas. Já não era sem tempo", conclui.

A BBC News Brasil tentou o contato com Bolsonaro por meio de assessores, ex-ministros, pessoas próximas, a comunicação do Partido Liberal e pelas próprias redes sociais para que ele pudesse dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.

Assim que a emergência de saúde veio à tona nos últimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.

Ele classificou a denúncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 ações de saúde entre 2023 e 2022 que levaram atenção especializada para dentro dos territórios indígenas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.

Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil indígenas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de proteção individual, totalizando 1,5 milhão de insumos enviados para essas operações.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64417930

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