Carioca, Glória Maria topou com lendas como Drummond, testemunhou tragédias, sofreu racismo e viveu aventuras no Rio

Glória Maria, que morreu nesta quinta-feira (2) no Rio, era carioca de Vila Isabel e fez, na cidade, coberturas e reportagens históricas. Ela também sofreu o racismo, viveu aventuras e contou com a sorte: encontrou ao acaso o poeta 💥️Carlos Drummond de Andrade numa véspera de Natal 💥

Em 24 de dezembro de 1984, Glória foi escalada para ver a movimentação no comércio e entrevistar pessoas atrás de presentes de última hora.

Na rua, ao longe, Glória reconheceu Carlos Drummond de Andrade.

“Não, não, já escolhi há muito tempo. Já estou em dia com os amigos”, respondeu Drummond.

“Tá só olhando vitrine!”, replicou a repórter.

A conversa prossegue, e Glória pergunta o que Drummond diria num dia de Natal.

“Olha, eu não sou muito otimista, não. Eu tenho esperança, mas acho o mundo muito errado, muito cheio de injustiça e de miséria. Então, o máximo que a gente pode desejar é que as coisas melhorem, né? Que haja uma tendência, pelo menos, para melhora. Acho que depende um pouco de nós. Nós começamos a desejar essa melhora, né?”, disse.

Glória Maria entrevista Drummond — Foto: Reprodução/TV Globo 1 de 3 Glória Maria entrevista Drummond — Foto: Reprodução/TV Globo

Glória Maria entrevista Drummond — Foto: Reprodução/TV Globo

Para 1985, o poeta desejou “menos inflação e mais paz de espírito”.

“Que os grandes do mundo se entendam, que pelo menos deixam de se devorar com ameaças com xingamentos, o que perturba muito”, falou — a década de 1980 foi marcada pela Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética.

Glória se despediu de Drummond com um beijo. “Ganhei meu presente de Natal!”, comemorou.

Quatro anos antes, em 1980, Glória pulou de asa-delta do alto da Pedra Bonita, em São Conrado, um dos pontos de voo livre no Rio de Janeiro. “Era um dia de vento extraordinário, foram 35 minutos direto”, disse.

A repórter, acoplada a um instrutor, gravou o texto da matéria em pleno ar.

“Ufa! É uma maravilha, depois dessa decolagem. Essa corrida louca que dura menos de cinco segundos pela rampa. Curtir o visual aqui da Pedra Bonita é fantástico!”, narrou.

Para registrar as imagens, a equipe técnica precisou colocar um paralelepípedo em cada extremo da asa, a fim de não afetar a estabilidade do equipamento.

Glória Maria fez um voo duplo de asa delta em 1982, no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/ TV Globo 2 de 3 Glória Maria fez um voo duplo de asa delta em 1982, no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/ TV Globo

Glória Maria fez um voo duplo de asa delta em 1982, no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/ TV Globo

Vinte anos depois, ao Memória Globo, Glória disse acreditar que ali estava inaugurando um novo estilo de jornalismo.

“Você sabe que a partir dessa matéria da asa-delta é que começou um pouco dessa coisa da matéria participativa. Até aqui não tinha isso”, comentou.

Depois da asa-delta, Glória foi voar na montanha-russa do Tívoli Park, icônico parque de diversões que ficava onde hoje é o Parque dos Patins, na Lagoa. “Era para saber a sensação de andar”, contou.

Em 1977, Glória protagonizou a primeira entrada ao vivo e em cores no Jornal Nacional — no caso, mostrando o movimento de saída de carros do Rio de Janeiro, em um fim de semana.

Foi histórico, mas também foi um sufoco: a luz da câmera falhou, e todos tiveram que improvisar.

“Queimou a luz, e faltava um minuto para entrar no ar. Aí, meu Deus — acho que eu nunca vou esquecer disso. Eu olhei, eu estava na frente da UPJ [unidade portátil de jornalismo], estava o carro ali, né? Eu estava aqui, e ia mostrar a coisa no fundo; o câmera ali, na minha frente”, disse.

“Aí eu olhei, o câmera, o Padula olhou para mim e disse: ‘Acende o farol!’ Aqueles faróis grandes, da Veraneio. Só que, bom, iluminava aqui [na altura das pernas]. Mas tinha que me iluminar no rosto. Aí eu falei: ‘Peraí!’ E todo mundo berrando: ‘Glória! Glória! Glória...’ Armando [Nogueira] na switcher, Alice-Maria na switcher, aquele inferno”, narrou.

Glória Maria 10 anos após a queda do Elevado Paulo de Frontin — Foto: Reprodução/TV Globo 3 de 3 Glória Maria 10 anos após a queda do Elevado Paulo de Frontin — Foto: Reprodução/TV Globo

Glória Maria 10 anos após a queda do Elevado Paulo de Frontin — Foto: Reprodução/TV Globo

Um dos primeiros trabalhos de Glória foi também um dos mais marcantes: a queda do Elevado Paulo de Frontin, em 1971, no Rio Comprido.

“Eu estava começando na Globo, era estagiária ainda, foi meu primeiro ano. Foi talvez a coisa mais impressionante para aquele meu início de carreira, o primeiro grande impacto, noção do que seria jornalismo”, descreveu.

Essas imagens se perderam em um incêndio nos arquivos da emissora.

Dez anos depois, a repórter voltou ao local do acidente: “Há 10 anos, aqui neste lugar e nesta hora, eu vi de perto o drama causado pela queda deste elevado”, disse para a câmera.

Outra aventura no Rio foi escalar o Pão de Açúcar — não a trilha moderada do Morro da Urca, mas o paredão até o topo, a quase 400 metros de altitude.

“A gente tá terminando o lance mais difícil dessa subida. Parece que a gente terminou, mas não terminou ainda não”, contou, colada na rocha, em meio a cordas.

Quando Michael Jackson veio ao Brasil para gravar o clipe de “They Don’t Care About Us”, Glória ficou lado a lado do Rei do Pop em uma laje no alto do Santa Marta, em Botafogo.

A assessoria do astro vetou qualquer entrevista, mas Glória conseguiu ficar perto dele e arrancar uma declaração.

“Michael, tell someting for the brazilian people, please!”, pediu. “I love you, Brazil!”, respondeu.

Em 1980, a jornalista enfrentou o racismo numa época em que esse crime ainda era considerado uma simples contravenção.

Glória, então, foi protagonista da própria notícia.

“Na madrugada de hoje, por volta da uma da manhã, eu tentei subir num dos apartamentos aqui deste hotel, o Rio Othon Palace, na Av. Atlântica, em Copacabana, e fui barrada”, descreveu, para a câmera.

“Mas não fui barrada por ser jornalista ou por outro motivo. Eu fui barrada por ser negra. O gerente disse que ‘aqui negra não poderia entrar’. Então, fui até a 13ª DP e registrei queixa baseada na Lei Afonso Arinos”, emendou.

Para a série “Brasil em Constituição”, Glória reviu a reportagem.

“Foi um momento de muita dor, porque o racismo dói na alma. Quem não é preto nunca vai entender isso. E eu sabia que isso não podia acontecer, não podia ser discriminada, humilhada por causa da cor da minha pele”, declarou.

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