Ucranianos tentam salvar crianças de deportação e adoção por famílias russas
Berços vazios em uma ludoteca no pátio do lar regional de crianças de Kherson, no sul da Ucrânia, sexta-feira, 25 de novembro de 2022. — Foto: AP - Bernat Armangue
A Ucrânia afirma que mais de 16.200 crianças ucranianas foram levadas para a Rússia desde a invasão da Crimeia, em 2014. Uma política de deportações que se acelerou com a invasão do país em 24 de fevereiro de 2022. A Rússia chegou a adotar uma lei para facilitar a entrega de passaportes russos para órfãos vindos de territórios ucranianos ocupados, simplificando a via para sua adoção. ONGs e relatórios denunciam uma tentativa de "limpeza étnica" da Rússia.
Em Kherson, onde a população continua a viver sob bombardeios constantes, mesmo após a retirada das tropas russas, moradores utilizaram várias estratégias para salvar suas crianças, mas tiveram que assistir impotentes muitos casos de deportação.
Em outubro, os russos deixaram a cidade, após uma contraofensiva do Exército ucraniano. Mas antes, eles capturaram e deportaram as crianças que estavam em orfanatos. Na instituição dirigida por Olena Kornienko, 48 crianças, de entre 0 a 5 anos, foram retiradas. Em entrevista ao canal France 24 (emissora do mesmo grupo que a RFI), ela afirma que foi demitida e uma empregada pró-Rússia foi contratada em seu lugar.
Em um vídeo postado no Youtube em 21 de outubro de 2022, o prefeito adjunto de Kherson, Kirill Stremousov, nomeado pelos russos para dirigir a cidade, descreve a retirada dos menores como uma operação de salvamento.
As crianças da creche de Olena foram vistas, logo depois, em uma foto postada no perfil Telegram de Maria Lvova-Belova, comissária para os direitos das crianças do presidente russo, responsável pela deportação de crianças ucranianas. Nas imagens ela aparece mostrando os menores com suas novas famílias russas.
2 de 3 Crianças brincam num parquinho em uma cidade modular para refugiados de regiões ucranianas atingidas pela guerra, em Lviv, Ucrânia, quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023. — Foto: AP - Mykola TysCrianças brincam num parquinho em uma cidade modular para refugiados de regiões ucranianas atingidas pela guerra, em Lviv, Ucrânia, quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023. — Foto: AP - Mykola Tys
Stanislav Boumbu e Olga Pilarska, médicos que trabalham em um hospital para crianças de Kherson, contam como, durante a ocupação, esconderam 10 órfãos dos russos no centro de saúde.
De acordo com Olga, todas as manhãs, após o anúncio da evacuação das tropas de Moscou, o comando russo exigia do hospital listas das crianças que poderiam ser retiradas. Os médicos prepararam documentos falsos e colocaram aparelhos de assistência respiratória ao lado das camas para fingir que os pacientes não podiam ser transportados.
"Claro que tínhamos medo. Era um grande risco para todo o pessoal e todo o hospital. Mas cada um, dentro de suas possibilidades, defende a Ucrânia. Era nossa maneira de defendê-la", disse Boumbu à France 24.
Volodymyr Saihak, diretor de um orfanato e instituição para crianças sob tutela, também escondeu menores em sua casa e de seus empregados durante a ocupação russa. Ele mostra as fotos das 52 crianças que tinha em sua instituição.
"A guerra na Ucrânia já dura 8 anos, e nós vimos o que aconteceu em Donetsk e Lugansk, como levaram as crianças de lá", diz.
Em junho de 2022, os russos foram à casa de Volodymyr pela primeira vez. "Eles perguntavam onde estavam as crianças", conta. Ele mentiu, e os soldados acreditaram. Mas um mês depois, eles levaram mais órfãos, que tinham sido retirados de um abrigo na linha de frente da guerra.
"Eles nos trouxeram as crianças a bordo de veículos militares. Eles estavam assustados, pensavam que seriam levados para a Rússia. Ficaram aqui durante um mês, mas em 19 de outubro, quando os russos se retiraram de Kherson, eles levaram as crianças. Não tivemos escolha. Eu disse, 'por favor, deixem-os aqui, não são soldados, são apenas crianças'", conta.
Com a ajuda de ONGs internacionais, algumas destas crianças puderam ser retiradas da Rússia. De acordo com a Ucrânia, apenas 307 crianças foram devolvidas, para mais de 16.200 deportadas.
A comissária de Vladimir Putin para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, é uma agente central do dispositivo russo implementado para deportar crianças ucranianas para adoção.
Em seu canal Telegram e na televisão russa, ela mantém um discurso de "salvadora" das crianças. No entanto, ela deporta centenas delas, obrigando-as a deixar os territórios anexados da Ucrânia para se estabelecerem em um país estranho: a Rússia.
Fotografada a bordo de aviões, trens ou rodoviárias, ela diz com orgulho, nas redes sociais e na mídia estatal, que graças a ela, centenas – até milhares, é difícil precisar – de crianças ucranianas são “protegidas” pela "grande Rússia". Ela não fala de "deportação", mas sim de "resgate" e prefere "tutela" à "adoção".
Provenientes de orfanatos, hospitais, centros sociais ou lares de acolhimento em regiões anexadas, órfãs ou separadas das suas famílias devido aos combates, estas crianças são oferecidas a famílias russas, mediante pagamento do Estado.
Totalmente contrária ao direito internacional e à Convenção dos Direitos da Criança, a prática foi denunciada ao Tribunal Penal Internacional em dezembro pela associação francesa “Pela Ucrânia, pela sua liberdade e pela nossa”. A ONG Anistia Internacional também apontou para um “crime de guerra” e um possível “crime contra a humanidade”, num relatório publicado em novembro passado.
Mas, longe de ser escondida, a política de deportação de crianças alimenta a propaganda russa e acompanha a "desucranização" desejada por Vladimir Putin.
A Rússia afirma ter recebido cinco milhões de refugiados de regiões anexadas, enquanto a Ucrânia declarou no início de dezembro que 13.000 crianças foram deportadas para a Rússia, embora seja difícil avaliar seu número real.
3 de 3 O presidente russo Vladimir Putin (de costas) em encontro com Maria Lvova-Belova, comissária russa para os direitos das crianças, na residência Novo-Ogaryovo, nas proximidades de Moscou, em 16 de fevereiro de 2023. — Foto: AFP - MIKHAIL METZELO presidente russo Vladimir Putin (de costas) em encontro com Maria Lvova-Belova, comissária russa para os direitos das crianças, na residência Novo-Ogaryovo, nas proximidades de Moscou, em 16 de fevereiro de 2023. — Foto: AFP - MIKHAIL METZEL
O Laboratório de Pesquisa Humanitária da Escola de Saúde Pública de Yale (HRL), avalia que a estratégia poderia fazer parte de um plano de limpeza étnica do Kremlin na Ucrânia.
Em um relatório divulgado em 14 de fevereiro, o HRL afirma que identificou 43 instalações com pelo menos 6.000 crianças ucranianas, a maioria focada em esforços de reeducação pró-Rússia, algumas forçando crianças à adoção.
O relatório afirma que quatro destas instituições impediram que crianças ucranianas voltassem para seu país de origem. De acordo com o Instituto pelo Estudo da Guerra, um americano, as autoridades russas estariam tentando deportar crianças sob o disfarce de esquemas de recreação.
O relatório detalha que o governo federal russo está coordenando centralmente esse esforço.
Além disso, as autoridades de ocupação russas continuam os esforços para intimidar os pais ucranianos a enviarem seus filhos para escolas russas em territórios ocupados.
O Centro de Resistência Ucraniana informou, em 15 de fevereiro, que as autoridades de ocupação russas criaram “comissões de assuntos juvenis” para emitir multas aos pais ucranianos que educam seus filhos em escolas ucranianas por meio do ensino online.
O Centro também informou que as autoridades russas estão realizando incursões para inspecionar residências particulares e identificar crianças que faltaram muitas aulas nas escolas russas.
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