Cinco anos depois, 18 mil homicídios a menos

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro nos colocou diante de um enigma. Apesar do desastre que seu mandato representou para as políticas de segurança pública, o ano de 2022 acabou com uma quantidade de homicídios quase um terço menor do que o total de casos registrado em 2017, primeiro ano de funcionamento do Monitor da Violência. Cinco anos depois, foram 40,8 mil mortes intencionais violentas, o que significa 18 mil ocorrências a menos*.

A queda dos homicídios já tinha se iniciado em 2018, no último do governo de Michel Temer, mas a redução teve prosseguimento em 2023 e durante o governo Bolsonaro. Temia-se pelo pior diante do crescimento de armas em circulação, que alcançou 78%, o que representava quase um milhão de armas a mais. Havia 1,3 milhão de armas registradas no final de 2018, último ano do governo Temer, saltando para 2,3 milhões em novembro de 2022, segundo levantamento dos institutos Sou da Paz e do Igarapé.

As contas e as análises não parecem fazer sentido. Mais armas de fogo nas mãos do público, afinal, conforme mostram diversos estudos, podem provocar desenlaces fatais nas brigas de trânsito, nos bares ou em casas noturnas, por exemplo. O mesmo pode ser dito em relação aos conflitos domésticos e suicídios, sempre mais letais nas residências com revólveres e pistolas. Estes tipos de ocorrências circunstanciais continuaram ocorrendo e foram somadas aos crimes políticos, que passaram a fazer parte de nossa paisagem. Mesmo assim, os casos gerais de assassinatos caíram.

O presidente Bolsonaro argumentou que a redução dos homicídios era uma decorrência justamente do aumento das armas em circulação, que levaria o ladrão a “pensar duas vezes” antes de assaltar um “cidadão de bem”. A explicação não faz sentido porque os homicídios decorrentes de assalto são a absoluta minoria, não chegando nem a 5% do total de mortes intencionais violentas.

Nas cidades que se urbanizavam rapidamente, esses lugares se tornaram focos de diversos tipos de conflitos letais. A busca por oportunidade e dinheiro em um mercado ilegal e bilionário de drogas, que se tornou mercadoria cobiçada nos grandes centros, era um dos combustíveis dessa tensão. As polícias jogavam gasolina na fogueira agindo com violência nas periferias como um exército em defesa de uma classe – a dos moradores de classe-média e alta das regiões centrais, que deviam ser protegidos dos jovens dos bairros pobres. Havia, inclusive, disputas geracionais.

Os justiceiros, muitos deles migrantes, defendiam os valores dos trabalhadores, que chegaram para dar duro em São Paulo, eliminando os “bandidos”, já nascidos em São Paulo, revoltados com a miséria e a falta de oportunidades, que assaltavam os próprios vizinhos e rivais, seduzidos pelos valores hedonistas do crime.

Pude acompanhar ao longo de reportagens e de pesquisas de campo os resultados desses conflitos territoriais dos anos 80 e 90 em São Paulo. Nesse contexto conflagrado, um homicídio tinha o potencial de promover um efeito multiplicador, gerando círculos de vinganças que duravam anos. No Rio de Janeiro, essas disputas se estruturaram em torno das facções, como Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos. Policiais, que se transformariam em milicianos, grupos de extermínios, bancados por bicheiros e comerciantes, também eram elementos desse entreveiro, promovendo os mesmos círculos de vingança incessantes e contínuos que existiam em São Paulo.

A deterioração desse quadro era desanimadora porque parecia irreversível. Mesmo sem nenhuma esperança ou expectativa, testemunhei uma profunda transformação, que entrou em curso conforme os participantes desses conflitos passavam a se conscientizar dos resultados deletérios provocados pela desorganização no crime. Os homicídios e as vinganças entre rivais geravam imprevisibilidade e custos elevados, inviabilizando os negócios e atrapalhando os investimentos. Para ganhar mais dinheiro, era indispensável a construção de um pacto. Uma força invisível acionava a racionalidade dos agentes, que estava submersa embaixo de muita revolta e ódio.

O Primeiro Comando da Capital (PCC), que emergiu nesse contexto de caos, foi um grupo altamente inventivo em sua capacidade de cumprir esse papel de agência reguladora do mercado criminal, mesmo tendo a absoluta maioria de suas lideranças nas prisões. Sua legitimidade veio da proposta de interromper a autodestruição no crime e melhorar a vida de seus integrantes. A costura de uma ampla rede horizontal de participantes, compromissados com as regras do grupo, levou essa autoridade para os bairros. Um dos efeitos mais vistosos de processo foi a contínua redução de homicídios no Estado de São Paulo, que se tornou a unidade da federação com a menor taxa de casos no Brasil.

Esse padrão paulista se nacionalizou ao longo dos anos. O PCC passou a vender armas e drogas para outros estados e a encontrar algumas dessas lideranças regionais nos presídios federais, criados a partir de 2003 para isolar os criminosos mais perigosos do país. A partir desse contato, o modelo de gestão por meio de gangues prisionais acabou se espalhando, em um momento em que os presídios estaduais não paravam de receber novos detentos. As lideranças penitenciárias locais passaram a mimetizar o modelo de negócios do PCC, situação que transformou a cena criminal brasileira. Segundo levantamentos, atualmente existem pelo menos 53 facções agindo nos estados, que também contam com a presença das facções nacionais, como o PCC e o CV.

Em um primeiro momento, essa mudança causou desequilíbrio e rivalidade no mercado brasileiro de drogas, promovendo conflitos principalmente em estados do Nordeste e Norte. A presença de mais mercadorias e armas, disputadas por grupos concorrentes tentando marcar posição, incluindo o PCC, promoveu aumento de homicídios e criou os inescapáveis círculos de vingança, que fizeram as taxas de violência explodirem nessas regiões.

Eram os efeitos resultantes de uma das regras básicas observadas na narcoeconomia. Em mercados ilegais competitivos, a liderança tende a ser disputada à bala porque não existe mediação formal e a lei do mais forte acaba prevalecendo. Essa rivalidade entre facções se disseminou rapidamente no Norte e Nordeste depois de 2003. O ápice da crise ocorreu justamente em 2017, marcado por sucessivas rebeliões em presídios, que provocaram quase 200 mortes, gerando um quadro de conflito aberto entre os grupos, que se espalhou para além dos muros.

Esse quadro conflagrado, contudo, era economicamente insustentável, porque prejudicava o lucro e os negócios de todos os grupos envolvidos. Caso quisessem continuar no ramo, era preciso criar condições para que os diversos agentes pudessem conviver e faturar. Deixar as diferenças no passado para estabelecer pactos racionais, que favorecessem os ganhos no tráfico.

O diálogo entre esses grupos foi favorecido nos presídios federais, em que estavam muitas das cabeças do crime nacional. Diante da dureza das regras vigentes nessas unidades, que aumentou ainda mais durante o governo Bolsonaro, havia um clima propenso à solidariedade. Esses presos, que já tinham dificuldade para receber a visita de seus familiares, foram proibidos de estabelecer qualquer contato físico com suas visitas, tendo que se encontrar com eles separados por vidros e conversar por telefone. As visitas e os familiares são os últimos elos de contato desses condenados com o lado de fora e por isso são altamente valorizadas.

Ajudados por organizações não governamentais, esses presos, muitos deles chefes de facções, passaram a se organizar para denunciar os abusos das medidas restritivas desses presídios. A ONG Anjos da Liberdade, por exemplo, passou a colher informações para tentar instaurar um processo junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro. Havia bons argumentos para a ação judicial. As unidades de segurança máxima, como os presídios federais, são permitidas em diversos países. Mas as medidas altamente restritivas são autorizadas de forma temporária. No Brasil, muitos presos passaram a cumprir toda a pena nessas unidades.

O sofrimento comum e a existência de um canal de comunicação nos presídios federais criaram a oportunidade para os próprios grupos tentarem superar o processo autodestrutivo que se mantinha havia anos e que explodiu em 2017. O PCC, por exemplo, sempre defendeu a diplomacia entre rivais, a partir da máxima “o crime fortalece o crime”. Um mercado pacificado beneficia a todos os grupos, que ganham mais dinheiro com a venda de droga ao reduzir custos, aumentar ganhos e ter mais capacidade de planejamento. Não chega a ser surpreendente. A construção de uma governança criminal com regras definidas foi o caminho percorrido pelas principais máfias internacionais, que assim fortaleceram seus negócios, cada vez mais prósperos e com capacidade crescente de se infiltrar e influenciar as instituições.

Creio que o Monitor e levantamentos como o Anuário e o Atlas da Violência também acabam tendo um papel neste cenário, ao expor periodicamente o quadro dos Estados, incentivando os governadores a buscarem reverter as taxas. A redução dos homicídios no Brasil é o termômetro de um mercado criminal mais equilibrado. Quando os governos estaduais são intolerantes com casos de homicídios e investem na punição dos matadores, os grupos tendem a parar mais rapidamente para reduzir os riscos e custos de seus negócios.

Para quem quiser saber mais detalhes dessa história, conto mais detalhes no podcast chamado Rádio Novelo Apresenta (RNA), no episódio Trama e subtrama, em que converso com a advogada Flávia Froes, que criou a ONG Anjos da Liberdade e atua na defesa de integrantes de diversas facções brasileiras, trabalha com os presos em unidades federais. Parte deste debate também foi publicado no Jornal da USP, antes dos dados do Monitor ficarem prontos.

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