Felipe Miranda: Eu quero meu coletinho (à prova de bala)
“Muitos querem saber do retorno, esquecendo do risco assumido” diz o colunista
Hoje se encerra um semestre complicado. Depois de anos bastante positivos para os ativos de risco, enfrentamos a surpresa da pandemia e seus impactos expressivos sobre a atividade.
Observamos uma queda sem precedentes entre os meses de fevereiro e março, em intensidade e rapidez. A sequência de circuit breakers na Bolsa brasileira não encontra paralelos na história, indo além de um evento “seis sigma”, se os retornos fossem distribuídos de maneira Gaussiana (obviamente, não são). Como brincou a Dynamo em carta aos cotistas, observamos “um cisne negro de olhos azuis e bico amarelo talvez”.
Igualmente ou talvez até mais surpreendente foi a recuperação subsequente. Estimulados por intervenções monetárias infinitas (essa foi a expressão de Jerome Powell: “unlimited resources”, a versão americana para o “whatever it takes” de Mario Draghi), pela expectativa de estímulos fiscais, pela expectativa por remédios e vacinas contra a Covid-19 e por indicadores econômicos mais recentes apontando uma recuperação em V, as Bolsas, em nível global, apresentaram entre abril e junho um de seus melhores trimestres da história.
O índice MSCI All Country World, uma referência para o comportamento das Bolsas globais, sobe 18% em três meses, seu maior avanço em uma década.
Ao final, o acumulado ainda é bem negativo, em especial para os ativos brasileiros — a exceção é o índice Nasdaq, empurrado pelas empresas de tecnologia norte-americanas, mas essa é uma história à parte, bem particular. O Ibovespa caiu 19%, o dólar sobe cerca de 35% sobre nossa moeda, e o ouro ganha 53% (uau!).
Eu gostaria de acreditar que o resultado do semestre, ainda bastante negativo para a maior parte dos ativos brasileiros, pudesse servir para reforçar a importância da diversificação, para lembrar a todos da impossibilidade de prever o futuro, da quase inviabilidade da manutenção de posições alavancadas pelo investidor pessoa física, da necessidade de se carregar proteções clássicas no portfólio, como dólar e ouro. Sendo ainda mais otimista, torceria para percebermos o quanto o hedge é caro no Brasil e difícil de montar, mas essa também é outra história.
Infelizmente, porém, receio conter expectativas ingênuas no parágrafo acima. Se, de um lado, o comportamento do semestre deveria sugerir a necessidade de o bom gerenciamento do risco sobrepujar a ganância; de outro, a performance das ações e outros ativos mais arriscados desde abril serve para alimentar expectativas de que posturas concentradas, desmedidas e até irresponsáveis podem trazer riqueza rápido. Essa última interpretação predomina em vários círculos.
Muitos querem saber do retorno, esquecendo do risco assumido. São uma espécie de Titãs da Bolsa: “Só quero saber do que pode dar certo”. Acontece que, em muitas situações, dá errado. E o gosto de dar errado é muito mais amargo do quanto é doce o gosto de dar certo.
O saldo final do semestre ainda é negativo. Como lembrou o mais do que brilhante Daniel Goldberg na abertura da Live com o também brilhante Luis Stuhlberger na Verde Week, “vamos deixar uma coisa clara aqui: estamos todos mais pobres neste ano”. Mas mais do que isso: as coisas poderiam ter sido muito piores. Em determinado momento de março, abriu-se um grande abismo. Ninguém sabia o que aconteceria com a pandemia e com a atividade econômica.
Naquela fatídica segunda-feira em que o Fed salvou o Citadel e mais algum outro fundo (chegou a se especular até sobre a Bridgewater), flertamos com uma gravíssima crise financeira — se o banco central americano demorasse apenas algumas horas ou não atuasse de maneira tão intensa, talvez as coisas tivessem sido bem diferentes.
Ou não. Na verdade, não sabemos. Porque não dá para saber. A História só nos conta o que foi, nunca o que poderia ter sido. E o mais curioso dessa brincadeira é que, muitas vezes, o cenário realizado acaba sendo o de menor probabilidade. Há situações verossímeis que são inverídicas. E há situações verídicas inverossímeis. A realidade é mais estranha do que a ficção.
Existe aquele estudo clássico das Finanças Comportamentais, que vocês três já devem conhecer. A dor é, na média, 2,5 vezes mais desagradável ao ser humano em módulo do que um benefício lhe é agradável. Em termos financeiros, seria mais ou menos assim: se você tem um prejuízo de R$ 1, isso altera seu humor na mesma intensidade (no caso, para pior) do que se você tivesse um lucro de R$ 2,50. Não há simetria entre as coisas.
Daí deveria derivar o óbvio, uma das insistências de Howard Marks: de que o risco (não o retorno) é mais importante, porque o prejuízo mexe mais com você do que o lucro. Intuitivamente, se uma família tem R$ 200 mil e ela perde todos esses R$ 200 mil, ela está arruinada. Já se ela ganha outros R$ 200 mil e chega a um patrimônio de R$ 400 mil, claro que é legal, mas a mudança de vida, em termos práticos, foi muito menos expressiva do que no caso da destruição patrimonial.
Proponho um exercício: observe, friamente, financistas, youtubers e analistas comentando sobre ações e outros ativos. O quanto eles falam dos ganhos potenciais comparativamente aos riscos do negócio? Mesmo o risco sendo a coisa mais importante, basicamente só se fala do retorno. Talvez porque estimular a ganância seja muito mais atraente do que tratar do comedimento.
Há uma tendência humana em julgar as coisas pelo resultado. Se você comprar uma ação e ela subir, talvez se ache um gênio. Mas será que o rendimento positivo deveria esgotar a autoavaliação? Será que o processo não importaria mais?
Veja: a princípio, você tem 50% de chance ao comprar uma ação. Pode ter sido apenas sorte — e não se engane: a sorte cumpre um papel enorme, às vezes, sobretudo no curto prazo, determinante neste ambiente. O problema de contar com a sorte é que o jogo vai ser repetido ao longo do tempo. A observação de uma cara na moeda não é garantia de que o próximo resultado será também cara. Pode dar coroa.
Você aceita uma luta contra o Mike Tyson e, poucos minutos antes do confronto, ele sente uma infecção alimentar. Você é declarado vencedor. Isso não faz do seu aceite uma decisão racional ou acertada, tampouco você é melhor lutador de boxe do que o Mike Tyson.
No longo prazo, importa muito mais o processo. Se você repete várias vezes o ato de investir, a distribuição de resultados vai convergir para as probabilidades associadas. Então, as coisas inverossímeis tendem a se tornar inverídicas também.
Em um semestre absolutamente inverossímil, gostaria que ficasse a versão absolutamente verídica de que os vencedores de longo prazo não são os líderes do ranking no curto prazo. Pode parecer uma contradição lógica, mas não é.
Líderes do ranking em determinados semestres ou anos costumam ser investidores excessivamente alavancados ou concentrados. Ele ganha muito em um ano e entrega tudo depois. Os vencedores de longo prazo são aqueles que se mantêm ano após ano entre os 70% e os 80% mais aptos. A consistência é o nome do jogo.
Que entremos no segundo semestre mais propensos ao longo prazo, à diversificação, ao gerenciamento de risco e ao menor interesse no resultado do vizinho. Isso é uma maratona, não uma corrida de 100 metros. O vizinho em disparada não vai aguentar os 42 km.
Entremos comprados em Bolsa, porque há muita liquidez no mundo, não há muita atratividade na renda fixa e temos bons ativos negociados a preços interessantes, ao mesmo tempo que fazemos hedge no câmbio e no ouro. É o que muita gente ganhadora de dinheiro tem feito por aí.
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