Felipe Miranda: Precisamos falar sobre day trade
“Eu conheci na pele o que o daytrading pode fazer com um investidor”, diz o colunista
Eu cheguei em casa e ele não me cumprimentou. Pelo que posso me lembrar, foi a única vez que isso aconteceu. Meu pai simplesmente olhou para mim, franziu as sobrancelhas, inclinou o pescoço para baixo e puxou o maço de Galaxy.
“Oi, pai. Tá tudo bem?”
…
“Pai?”
“Bem.”
“Que foi?”
“Nada.”
“Pai, para. Óbvio que aconteceu alguma coisa. Fala logo. Tô preocupado.”
“Acabei de perder a sua faculdade.”
“Como assim?”
“TCOC.”
“De novo, pai?”
“Era diferente. Estava claro que ia subir. Tinha feito um padrão gráfico lindo.”
“O que aconteceu?”
“Algum filho da mãe entrou vendendo, acionou stop de todo mundo.”
“Qual o tamanho da trolha?”
“O equivalente à sua faculdade.”
TCOC era a sigla para Tele Centro Oeste Celular, que, depois, seria reunida junto a outras operadoras no que hoje conhecemos como Vivo. Era alvo frequente de especulação, justamente porque se esperava a junção entre as companhias. Era uma época em que telecom mandava no Ibovespa. Meu pai adorava o jogo com elas. Estava, como sempre, alavancado. Entregou ali uma parte da nossa poupança.
Felizmente, não foi tão grave naquele momento, porque possuía uma poupança maior. Infelizmente, também não foi a única vez. A essas, seguiram-se outros tombos mais relevantes, um atrás do outro, cada vez pior. Quanto mais prejuízo meu pai tinha no trade anterior, mais ele se via desesperado, ávido a recuperar na aposta subsequente. Entra o desespero, sai a racionalidade. A trajetória era ladeira abaixo. Globo Cabo (carinhosamente apelidada de Globo Nabo) e Embratel foram casos particularmente marcantes.
Eu conheci na pele o que o daytrading pode fazer com um investidor. Mais do que isso: o que ele pode fazer com uma família. Naqueles trades alavancados com TCOC, NETC e EBTP, não perdemos apenas centenas de milhares de reais. Junto, foram embora a coesão familiar, a autoestima do meu pai (diga-se: ele era brilhante intelectualmente; saiu de feirante para diretor de banco e dono de corretora), a harmonia da relação com minha mãe.
Talvez por essa influência pessoal o tema seja tão caro a mim. Há um viés aqui. E eu peço desculpas por isso. Contudo, não parece ser apenas só isso. Estudos apontam em direção semelhante, com artigo científico comprovando como a probabilidade de sucesso em daytrading é baixa.
Ficou popular no meio acadêmico o paper de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, da FGV, apontando como o day trade mais se parece com um cassino do que com técnica propriamente. Seu estudo mostrou que 97% das pessoas que optam por essa abordagem perdem dinheiro. Entre os poucos ganhadores, a média implica ganho inferior a R$ 300 por dia.
Por que estou tratando do tema hoje?
Com a quarentena, a perda de renda de alguns e a popularização do mercado de ações, cresceu a narrativa de que o investidor pode obter remuneração adicional e preencher seu orçamento a partir de operações de curtíssimo prazo na Bolsa. Da noite para o dia, veríamos toda uma nova geração de traders bem-sucedidos nascendo.
Ontem, viralizou no WhatsApp da turma do mercado um vídeo da blogueira Gabriela Pugliesi em que ela afirma ter descoberto um novo talento na quarenta: segundo ela mesma, estaria comprando e vendendo ações todos os dias e, supostamente, ganhando dinheiro.
Dois esclarecimentos importantes antes de prosseguir.
O primeiro: não quero com este texto dizer que só existe um método de se ganhar dinheiro na Bolsa. Definitivamente, não é o caso. Respeito cada uma das abordagens. Cada um que encontre o seu jeito de construir patrimônio de forma sólida. O ponto é que existem algumas abordagens em que sabemos haver menores chances de sucesso, em especial aquelas em que leigos querem jogar um jogo em que muitas vezes nem mesmo os maiores especialistas conseguem.
O segundo: eu simpatizo com a Gabriela Pugliesi. Poderia até dizer que admiro sua capacidade de comunicação e sua competência em seu nicho de atuação. Também reconheço que publicar posts patrocinados é a forma de ela ganhar seu pão de cada dia, o que eu respeito.
Contudo, justamente por conta dessa habilidade ímpar, da enorme abrangência de sua comunicação e da capacidade de realmente influenciar o dia a dia de seus seguidores, entendo que a blogueira poderia tratar o tema com um pouco mais de responsabilidade.
Questiono dois pontos especificamente.
Ainda que seja verdade e ela esteja mesmo ganhando dinheiro com daytrading, a frase “descobri um novo talento na quarentena” é mal construída. Quatro meses de bons resultados em Bolsa não comprovam nada. Em especial em períodos de alta de quase todas as ações, como foram os últimos meses, só há gênios na renda variável.
Aliás, quanto mais irresponsável você foi desde o final de março, mais dinheiro você ganhou. O mercado é um ambiente muito sensível à aleatoriedade e às intempéries da deusa Fortuna. Leia “Iludidos Pelo Acaso”, o melhor de Nassim Taleb. Aproveite o embalo e recorra a Malcolm Gladwell, que insiste na necessidade de 10 mil horas para se formar um real talento. Sucesso envolve, sim, certas capacidades puras, mas é, acima de tudo, muito mais transpiração e exposição à aleatoriedade.
O segundo é o fato de, conforme aponta a pesquisa acima, jogar com as probabilidades contra si ao especular via day trade, enquanto deveríamos fazer o contrário: usar as probabilidades a nosso favor.
Pensemos em probabilidade, apenas aleatoriamente. Se você escolher de forma totalmente randômica 100 ações e voltar a olhar para elas apenas daqui a vários anos, o que deve acontecer?
Vamos considerar o resultado mais simples possível. Um terço vai muito mal e vai a zero. Você perde 100% do capital em cada uma das 33 dessas empresas malsucedidas. Um terço fica meio no zero a zero, empate de 0% em cada uma delas.
Já um terço vai muito bem. Nessas, você não ganha apenas 100%. Você vai multiplicar seu capital por 2x, 5x, 10x, 20x. Essa assimetria das ações, em que você pode perder 100% ou ganhar, potencialmente, infinito, coloca as probabilidades a seu favor se você jogar o jogo de forma diversificada e com o foco no longo prazo.
Lembre-se também de que a Bolsa americana, que existe há zibilhão de anos, rende nesse longo histórico cerca de 8% ao ano, em dólares, consistentemente.
Pondere ainda que Warren Buffett, considerado o maior investidor de todos os tempos em ações, dá algo como 20% ao ano em seu portfólio. Mais recentemente, ele mesmo tem tido dificuldade em bater o S&P e recomenda ao investidor pessoa física o uso de fundos passivos. George Soros, assim como seu pupilo Stanley Druckenmiller, é outro que insiste na necessidade de se respeitar o mercado.
Há uma espécie de teorema com a provocação “60 milhões de franceses não podem estar errados”, que se refere à sabedoria das massas — o mercado, como um ente agregado, é muito mais sábio e eficiente do que a inteligência de uma só pessoa. Respeite o mercado, não queira ser tão mais esperto do que ele. A grande genialidade é saber que não há genialidade alguma, ou, então, que todos são gênios neste campeonato de Fórmula 1 (sim, porque é disso que se trata: as melhores cabeças do mundo, os melhores processos, a melhor tecnologia, todos em busca de ganhar mais dinheiro nessa brincadeira).
Não é mais razoável ir por um caminho associado à diversificação e ao investimento de longo prazo do que enveredar-se pela via do day trade, em que dominam os altos custos de transação e os resultados estão muito mais atrelados à aleatoriedade?
Vários estudos apontam que de 75% a 90% da construção patrimonial em longo prazo, que é o que interessa obviamente, passa pelo bom asset allocation, ou seja, pela escolha adequada dos pesos entre classes de ativos.
É isso que deveríamos estar discutindo. Como insiste Ray Dalio, o maior gestor do mundo, tenha algo como 15 ativos com bom potencial de valorização estimado e sem muita correlação entre si. Espere o tempo passar. Esse é o Santo Graal dos investimentos.
Evidentemente, o mito de que o daytrading pode ser um ótimo complemento da sua renda é muito atraente — quem não quer um método para ganhar dinheiro todo dia? O problema desse mito é que ele é… um mito.
Há um trecho interessante de matéria recente da Exame com o experiente investidor Mark Mobius, grande especialista em mercados emergentes. Vale replicar o alerta aqui:
“Apresentado ao crescimento da participação da pessoa física na Bolsa, por meio de aplicações diretas, Mobius disse o pouco que é muito: ‘Ohh, big mistake’. E explicou a razão de seu pessimismo. As pessoas têm pouco tempo para cuidar de seus investimentos e reagem muito a rumores. ‘É melhor transferir as decisões sobre como aplicar o dinheiro para um profissional e independente’. Ele disse que isso está acontecendo no mundo todo, não só no Brasil, e se preocupa. ‘Há muitos jovens no mercado agora e eles gostam muito de jogos. Usam o mercado para apostar, fazer day-trade. E a história mostra, você sabe, que day-traders não fazem muito dinheiro. Pode ser muito desapontador.’”
Fico verdadeiramente feliz com o tal “financial deepening”, com a popularização do mercado de ações no Brasil. Sempre lutamos por isso, desde nossa fundação, há 11 anos. Apostamos nele lá atrás e é inclusive ótimo do ponto de vista empresarial à Empiricus que tudo isso esteja acontecendo. Contudo, ele vem com grandes riscos.
Como resumiu Tom Nichols em “A Morte da Expertise”, as redes sociais deram voz a leigos mesmo em assuntos que deveriam ser tratados por especialistas. O problema dos influencers é que eles realmente influenciam o comportamento das pessoas — se for feito sem a devida responsabilidade e fora do seu círculo de competências, pode não ser uma boa influência.
Encerro hoje com um tuíte de Carl Richards, que me parece apropriado para o momento, numa tradução livre:
“Esteja alerta a qualquer planejador financeiro que venda certeza. Certeza é fácil de vender porque os humanos querem comprá-la. Um problema: isso é um mito. Encontre um planejador financeiro que saiba isso.”
Os especialistas estão cheios de dúvidas; os iniciantes, cheios de certezas.
O que você está lendo é [Felipe Miranda: Precisamos falar sobre day trade].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.
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