Felipe Miranda: Se não pode cair, vai subir

“O prognóstico de um crescimento mundial sincronizado, com a volta à normalidade com as vacinas, muita liquidez, menor beligerância entre EUA e China e um dólar mais fraco, abre espaço para bom comportamento dos ativos de risco”, diz o colunista.

Nas mesas de trading de um grande banco estrangeiro, há um lembrete: “Compre se for subir, venda se for cair”. Parece idiota, mas, na verdade, é bastante sofisticado e reflete a necessidade do pragmatismo no trading, sem teorias mirabolantes. A simplicidade é a maior das sofisticações.

Há apenas dois botões na nossa frente: “comprar” e “vender”. Imagine que, de repente, você descobre que o mercado não pode mais cair. Ora, se não vai cair, então deve subir. Você compra.

Parece uma situação platônica e hipotética, mas, na verdade, é bem concreta e material. Poderia inclusive ser uma das lições deste ano, que ficam como herança para 2023. 

Explico.

A ideia absolutamente simples encontra fundamentação teórica em 2005. Se pudéssemos ser mais rigorosos, sua origem está em 1988. Mas vamos por partes.

Robert Barro é um sujeito bastante inteligente. Em 2005, ele publicou pela Universidade Harvard um artigo chamado “Rare Events and the Equity Premium”. Na realidade, a ideia não era 100% original — sempre gosto de lembrar que, se você se acha original, desconfie que você apenas não leu o suficiente; provavelmente, alguém já pensou aquilo antes, você só não sabe. Em 1988, Thomas Rietz já havia proposto algo semelhante, no artigo “The equity risk premium: a solution”. Como, no entanto, o paper fora publicado por uma universidade menor e não era tão elegante do ponto de vista formal, acabou não recebendo a devida atenção. A academia também tem suas próprias vicissitudes e disputas de ego, além de, como qualquer outra coisa no mundo, estar sujeita às aleatoriedades típicas determinantes da fama ou da ausência dela.

Vamos do começo.

O “equity premium” é o excesso de retorno esperado para as ações relativamente à renda fixa. A noção é intuitiva. Sendo as ações mais arriscadas do que a renda fixa, as primeiras precisam pagar mais do que as últimas. Caso contrário, ninguém vai comprar ações. Todos vão preferir a segurança da renda fixa se a renda variável não oferecer mais retorno. O quanto, na média, as ações pagam mais do que a renda fixa é o chamado “equity premium” (também conhecido como “prêmio de risco de mercado” ou “prêmio de risco das ações”).

O equity premium sempre foi um puzzle na literatura acadêmica. Embora se pudesse identificá-lo com alguma consistência, era muito difícil modelá-lo. Em outras palavras, era possível perceber que, de fato, na média, as ações, na maior parte dos países (o Brasil aparece como uma exceção em várias janelas temporais), pagam mais do que a renda fixa. Contudo, esse quanto mais varia bastante no tempo e nunca se soube direito como ele variava, quais variáveis determinavam uma expansão ou uma contração do prêmio de risco de mercado.

Até os artigos de Rietz e Barro, tratava-se o equity premium dentro de um arcabouço de média (retornos) e variância (volatilidade). O uso de apenas os dois primeiros momentos da distribuição acabava se mostrando insuficiente para explicar o comportamento do prêmio de risco das ações. 

Então, veio a ideia de usar outros momentos da distribuição, como a assimetria e a curtose, ou seja, os eventos raros. Tecnicamente, em distribuições leptocúrticas, haveria um prêmio de risco mais dilatado.

Não se assuste com o palavrão. Parece difícil, mas é algo bem simples. Em situações em que ocorriam eventos raros com alguma intensidade, o investidor cobrava um maior retorno esperado para as ações. Diante do medo de uma perda súbita grande e inesperada, a renda variável era evitada. Ninguém queria comprar ações, porque temia-se um prejuízo muito grande do nada. Assim, as ações ficavam depreciadas e seu retorno esperado aumentava. Isso significa exatamente um prêmio de risco maior.

Se você descobre que tem uma chance grande de uma baita perda, evita-se a renda variável. Analogamente, se conseguíssemos evitar eventos raros negativos, ou seja, um super prejuízo, ficaríamos mais tranquilos em comprar ações, aceitando um menor retorno potencial. Cairia o prêmio de risco.

O que isso tem a ver com o que estamos vivendo?

Vivemos a maior sequência de circuit breakers da história. Nunca foram observados tamanha desalavancagem do sistema e tamanho rearranjo de portfólios quanto em março e abril deste ano. A velocidade da queda não encontra precedentes na história. A crise é comparada somente a 2008 e a 1929.

Ainda assim, ela durou dois meses para o mercado de capitais. A lição prescrita por Ben Bernanke sobre 2008 foi absorvida. “O que você faria diferente na gestão da crise do subprime?” “Eu faria mais e mais rápido.” Os bancos centrais agiram rápido e de forma muito intensa. Houve uma grande resposta também de política fiscal, com orçamentos comparáveis apenas a situações de guerra. Os mercados rapidamente se estabilizaram e, com a mesma intensidade que caíram, se recuperaram, sem qualquer paralelo na história, em velocidade e magnitude. 

Olhando com afastamento, gera perplexidade perceber que, num ano de pandemia e grandes quedas de PIB, as Bolsas internacionais renovam recordes sucessivos. O próprio Ibovespa está basicamente zerado em 2023. 

Como herança deste ano, temos uma liquidez brutal no sistema, a percepção de que os juros no mundo devem continuar baixos por muito tempo, as empresas listadas em Bolsa ganharam muito market share. Além disso, a sociedade como um todo mostrou uma capacidade inimaginável a priori de adaptação e desenvolvemos uma vacina em apenas um ano (nos casos anteriores, precisávamos de sete a oito anos), com uma tecnologia que abre todo um novo campo de pesquisa, capaz, segundo se especula, inclusive de potencialmente abrir caminhos para estudo da cura do câncer.

O prognóstico de um crescimento mundial sincronizado, com a volta à normalidade com as vacinas, muita liquidez, menor beligerância entre EUA e China e um dólar mais fraco, abre espaço para bom comportamento dos ativos de risco.

Tudo isso tem sido comentado por aí. Algo que me parece pouco valorizado pelo consenso até agora é a sensação tácita de que, se a maior crise desde 1929 durou dois meses e os bancos centrais entraram comprando tudo, então o mercado não pode cair estruturalmente. E se não vai cair, então vai subir. 

É quase como se 2023 servisse para nos mostrar que tiramos os eventos raros negativos de forma estrutural e sustentada dos mercados. Sem isso, os prêmios de risco podem ser menores e os múltiplos, portanto, maiores. 

O santo prêmio de risco é de Barro.

(A ideia deste Day One surgiu espontaneamente de conversa ontem com meu sócio Rodolfo. Devo a ele este texto.)

O que você está lendo é [Felipe Miranda: Se não pode cair, vai subir].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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