Ivan Sant’anna: Para Hollywood, Wall Street é uma festa
💥️Ivan Sant’anna, autor das newsletters de investimentos Warm Up Inversa e Os Mercadores da Noite
Caro leitor,
Quem vê Wall Street retratada nos filmes, e não conhece a “Rua” na vida real, pode pensar que alguns grandes traders são como Jordan Belfort, personagem de Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street(“The Wolf of Wall Street”).
Nada mais falso.
Nos 37 anos em que operei nos mercados nacional e internacional jamais testemunhei uma festa com cocaína servida em bandejas de prata (nem consumida num cantinho do banheiro), muito menos mulheres nuas saindo de bolos, chuvas de cédulas de cem dólares e outras esbórnias.
Se houve histórias parecidas, delas não tive conhecimento.
Aqui no Rio, por exemplo, houve um caso muito curioso no open market.Um dono de sociedade corretora ficou sabendo que haveria uma maxidesvalorização do cruzeiro (ou do cruzeiro novo, ou de novo no cruzeiro, ou no cruzado, ou no cruzado novo, ou no novo cruzado, ou no cruz credo, isso não importa). Sua fonte discriminou até os centavos.
O cara alavancou ao máximo sua 366 (resolução do Banco Central que fixava os limites de posição, proporcionais ao capital + reservas das instituições) comprando ORTNs cambiais. A maxi veio dentro do “combinado” e a corretora ganhou os tubos.
O que fez o financista? Jogou dólares pela janela, desfilou mulheres de topless, distribuiu cocaína à farta, organizou uma tremenda suruba na suíte imperial de um motel?
Não. Chamou cada um dos seus funcionários, desde os diretores até o cara da faxina, e perguntou: “Qual é o seu sonho na vida?”. Casa própria, carro do ano, excursão à Disney, primeira viagem de avião, recepção de casamento, custo dos advogados no divórcio… Houve de tudo. E tudo foi patrocinado pelo generoso insider.
Nada cinematográfico.
Voltando a Wall Street, a comunidade financeira de Lower Manhattan tem inúmeros defeitos, comete os mais diversos tipos de crime (insider trading, manipulação, falso bid, falso ask, operações desnecessárias só para gerar corretagens, etc), mas faz tudo com extrema seriedade e circunspecção (sem risos, por favor).
O próprio filme Wall Street, de Oliver Stone, com Michael Douglas interpretando o protagonista Gordon Gekko, tem um roteiro fora da realidade do sul da ilha, com um final cheio de dramas de consciência, coisa que, definitivamente, não se vê por aquelas bandas. Drama lá é só prejuízo, pé trocado, ser touro em dia de urso e vice-versa.
Poderia ter havido uma exceção nas caricaturas. Estou me referindo à adaptação para o cinema do livro A fogueira das vaidades (“The Bonfire of the Vanities”), obra prima de Tom Wolfe. Sem dar muitos detalhes mercadológicos do dia a dia de uma trading desk, Wolfe retrata com delicioso senso de humor o modus vivendi do trader típico da “Rua” no auge do bull market dos junk bonds.
E não é que Hollywood estragou tudo? Mesmo com Brian de Palma na direção e Tom Hanks no papel do trader Sherman McCoy, o filme é intragável e foi, com muita justeza, execrado pela crítica.
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A verdade é que um trader padrão leva, na maioria das vezes, uma vida quase militar.
Digamos que ele vive em Nova York e opere moedas no mercado futuro de Chicago. Quando os negócios começam para valer na Baixa Manhattan, por volta das oito horas da manhã, ele já tem de estar ciente do que aconteceu no Extremo Oriente e na Europa. Portanto, acordou antes das seis, se mora perto da “Rua”. Se vive em Connecticut, já está de pé desde as cinco.
Na hora do almoço vai comer um hambúrguer, uma pizza ou um chop suey, intercalando cada garfada ou mordida com um telefonema. Ou com dois. Ou com três. Aliás, come por tato, pois não pode tirar o olho das quatro ou cinco telas (de cotações, de gráficos e de notícias) que o engolfam na pequena baia que lhe é destinada.
Um trader jamais pode relaxar totalmente. Pois se o mercado para durante o fim de semana, o mesmo não acontece com o mundo, que continua girando. Kim Jong-un pode estar testando um míssil de longo alcance no sábado. Quem sabe, no domingo, uma eleição importante na Europa. E o Trump pode estar tuitando a asneira decisiva. Tudo tem de estar armazenado na cabeça do trader na hora em que o mercado eletrônico 24 horas abre no início da noite de domingo. Porque o início da noite de domingo nos Estados Unidos ou no Brasil é início da manhã de segunda no Japão ou em Cingapura.
Portanto, os Jordan Belfort só existem na imaginação dos cineastas.
Vida real.
Minha vida de operador não foi muito diferente dos exemplos que citei acima. Vamos a alguns fatos.
Certa ocasião, voando entre Chicago e Miami, precisei acompanhar o mercado pelo airphone, um aparelho que a United Airlines dispunha para cada três assentos. E esse foi o meu problema. Era um para três e ao meu lado viajava uma trader. Como a aeronave estava lotada, nós dois passamos as pouco mais de três horas de voo brigando pela posse do telefone.
Outra vez tive de atender um cliente na sala de recuperação de anestesia de um hospital no Rio, onde o cirurgião me extraíra o apêndice. O cara estava perdendo uma fortuna e queria falar comigo, mesmo que eu já estivesse na beira do caixão, para ajudá-lo em seu problema.
Por falar em caixão, houve uma tarde em que o call de encerramento (última rodada de negociação) na CSCE (Coffee, Sugar & Cocoa Exchange), em Nova York, se deu justamente quando o corpo de um parente estava sendo encomendado em uma capela do cemitério São João Batista. Não tive outra alternativa senão a de acompanhar a reza dos outros falando em meu celular algo como: “Vende, vende no encerramento do mercado (Sell MOC, market-on-close)”.
Outro dia, um antigo colega de mercado financeiro do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, me “acusou” de ter sido um workaholic naquela época. Na verdade, nunca deixei de ser, seja como trader, seja como escritor, seja como roteirista de televisão, seja como colunista. Ateu de carteirinha e, portanto, descrente da existência de vida após a morte, me sinto na obrigação de fazer tudo nesta. Só estão faltando as comemorações da Wall Street hollywoodiana.
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