Felipe Miranda: Efeito samba, 20 anos depois & desta vez é diferente, o retorno
💥️Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research
“Deu merda!”
Ele nem precisava ter falado. Eu já tinha percebido. A sensibilidade da relação tornava a fala apenas uma espécie de formalização desnecessária ou um pleonasmo deliberado para dar ênfase à troca de ideias. Podia medir seu grau de tensão pela profundidade dos tragos no cigarro. Naquele dia, testemunhei o desaparecimento de metade do Galaxy com apenas uma rodada.
Logo que cheguei à casa da minha tia Eunice, naquele 13 de janeiro de 1999, meu pai estava na porta, olhando para cima como se pedisse aos céus alguma saída mágica para o que acabara de acontecer.
Ao me aproximar, inclinei o pescoço para trás, arregalei os olhos e levantei as sobrancelhas como se perguntasse diretamente a ele a explicação para aquilo. Encontrei a resposta acima. Peço desculpas pela expressão francesa da abertura, mas dela não pude prescindir para descrever com alguma precisão a ainda fresca circunstância. Esquecer não posso daquele dia – uma das vezes em que ficamos pobres.
Há exatos 20 anos, dois palavrões conviveram de forma nem tão harmoniosa. A esse aqui citado, juntou-se outra expressão quase impronunciável: “banda diagonal endógena”.
O Brasil sofria um clássico ataque especulativo. Estávamos num regime de câmbio fixo, com Gustavo Franco, então presidente do Banco Central, defendendo a âncora cambial como forma de combater a inflação. O mercado percebia a impossibilidade de se manter a relação vigente entre o real e o dólar e, ciente do baixo volume de reservas internacionais, passou a atacar a moeda brasileira, naquilo que alguns chamaram de “efeito samba”.
As idiossincrasias brasileiras estavam restritas à música. Aquela dinâmica de crise cambial não era propriamente nova. O México, por exemplo, enfrentara coisa bem parecida quatro anos antes, com a famigerada Crise da Tequila ou o chamado “peso problem”.
Sob um ataque especulativo canônico e intenso, nossas reservas cambiais se esvaíram em velocidade estonteante, forçando a demissão de Gustavo Franco. Assumindo seu lugar, Francisco Lopes entra como presidente do BC propondo um novo regime cambial: a banda diagonal endógena.
Bom, em meio a um ataque especulativo e a uma crise cambial, você pode imaginar o que foi a tentativa de se explicar a expressão “banda diagonal endógena.”
Resumindo bastante a coisa, era uma tentativa de transição entre o câmbio fixo e o flutuante, com uma permissão inicial para movimentação da taxa. A extensão dessa variação seria definida pelo próprio mercado (daí a ideia de “endógena”). A cada vez que se batesse num dos limites da banda, ela seria ampliada. E era diagonal por conta da tendência ascendente (desvalorização; num gráfico, uma reta diagonal para cima) do câmbio.
Foi obviamente um fracasso, com Chico Lopes quase batendo o recorde mundial dos 100 metros rasos como presidente do BC. Entrou dia 13 de janeiro, saiu dia 2 de fevereiro. O período, claro, foi de muita volatilidade para os mercados – e impiedoso para o patrimônio da família Miranda. Talvez tenha sido meu primeiro MBA em Finanças, o melhor entre todas as graduações e pós-graduações já feitas na vida. Aos 14 anos, perdi a inocência, a fé no day trade e a confiança na concentração e na alavancagem. Aquilo formou meu caráter, viria a caracterizar minha obstinação pela sobrevivência no mercado. Somente os sobreviventes podem ser bem-sucedidos.
Recuperando a cronologia, no lugar de Chico Lopes entra Armínio Fraga, “a raposa no galinheiro”, que vinha do Soros Fund para defender-nos do intenso ataque especulativo. Então surgiu o tal “tripé macroeconômico”, que, de uma forma ou de outra, marca a gestão da nossa política macro desde então: regime de câmbio flutuante, sistema de metas de inflação e metas de superávit primário.
Desde então, a verdade é que convivemos bem no mundo real com dois desses pilares. Há avanços ainda a serem feitos, claro, na política monetária, mas eles são basicamente marginais. Somos hoje “world-class” em política monetária e nos viramos bem na questão cambial. Já o fiscal é uma tragédia.
A história brasileira tem sido, mesmo depois do tripé, marcada pela incapacidade de se endereçar a fragilidade das contas públicas, com o Estado (e isso transcende questões de governo, por definição) basicamente impossibilitado de cumprir o contrato de bem-estar social firmado na Constituição de 1988. As demandas sociais não cabem no Orçamento. Simplesmente não há dinheiro, ao mesmo tempo em que não há espaço para uma elevação da carga tributária. O resultado hoje é que, se nada for feito, a trajetória projetada para a dívida pública não converge, sendo explosiva.
Há algo, no entanto, que me traz alguma esperança de que desta vez talvez seja diferente. Essa expressão é sempre ridícula e passa uma impressão de um otimismo superficial, inocente e ingênuo. Mas existe, de fato, algo diferente agora – não se trata de opinião ou conjectura e, sim, de algo concreto e objetivo.
É a primeira vez desde a adoção do tripé macroeconômico que podemos recuperar fatos históricos materiais para apontar a destruição econômica gerada pela irresponsabilidade fiscal. A esquerda chegou ao poder e, depois de ter abandonado a austeridade com a demissão do ministro Palocci, fracassou. Antes, poderia sempre recorrer ao artifício retórico de dizer: “Se nós tivéssemos assumido o poder, levaríamos o país a novos ritmos e níveis de desenvolvimento econômico-social”. Isso acabou, já era.
Não há desenvolvimento econômico-social sem responsabilidade fiscal, que, claro, também não é condição suficiente para o primeiro, embora seja necessária. O crescimento econômico com maior justiça social não decorre de vontade política, voluntarismo, de uma suposta superioridade ética e moral, de modelos econômicos conhecidos apenas pela turma autointitulada “do bem”.
Se, por um lado, demoramos para, como sociedade, perceber a importância do devido endereçamento da questão fiscal e isso é claramente má notícia, por outro se percebe certo ineditismo do momento que talvez permita dar à dívida pública uma trajetória crível, com uma resolução estrutural do problema. Falo isso até mesmo por uma restrição objetiva: não há mais como continuar com o modelo anterior, por uma imposição algébrica; o dinheiro acabou.
Com 20 anos de idade, a maxidesvalorização brasileira nos remete a como as coisas podem ficar ruins se não fizermos as coisas certas. É uma lição valiosa. Felizmente, o inverso é verdadeiro também. Minha visão é de que estamos subestimando o quanto pode haver de novidade positiva da nova gestão macroeconômica. Nunca estivemos tão focados em resolver a questão fiscal.
E mais até do que a obstinação em torno do macro, há muita coisa do nível micro, regulatório e institucional no forno. Cada nó desatado é um pequeno avanço, “inch by inch”, como no discurso de Al Pacino em “Um Domingo Qualquer”.
A vida é tão curiosa que talvez nos coloque diante de uma maxiapreciação cambial agora. É momento de vender dólares para capturar a melhora macro. E se o seu foco é micro, as estatais estaduais me parecem particularmente interessantes.
Vinte anos atrás, naquele mesmo dia dos Galaxies sendo praticamente engolidos subsequentemente, papai falou: “Este país é muito complexo. Se você quer ter ideias razoáveis sobre o Brasil, não pense no nosso apartamento no Alto de Pinheiros. Pense nisso aqui, em Senhora do Porto, neste interior de Minas Gerais. Olha o saneamento básico desse lugar”.
Ligando os pontos, todos os caminhos me levam a Copasa.
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