André Lara Resende, MMT e a dívida pública
André Lara Resende escreveu sobre a dita crise da macroeconomia para o Valor Econômico. Representantes da heterodoxia e da ortodoxia se mobilizaram para repercutir o artigo. Assim, certos heterodoxos aproveitaram para cooptar o co-idealizador do Plano Real: “André Lara Resende disse que a teoria macroeconômica ortodoxa ruiu! Aliás, já te disse como a minha abordagem predileta oferecia todas as soluções nesse meio-tempo?” Paralelamente, outros ortodoxos o rejeitaram: “O velho só está interessado em vender livros e ministrar palestras. Quero saber é do peer review.” Expectadores permaneceram confusos: “Mas… o que é MMT?”
Não me parece que Lara Resende viveu o bastante para se tornar o vilão. Talvez o motivo de tanta controvérsia seja o cerne da discussão: a compreensão conceitual da dívida pública num novo paradigma macroeconômico. Um agravante para a controvérsia subsequente é a atual tribulação fiscal da economia brasileira. A origem das ideias que embasam a construção desse novo paradigma está no século passado.
“[…] moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta […] é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem […] é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos […] é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias.
“[…] dado que a moeda é uma unidade de conta […] O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar […] Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar importos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos.”
“[…] o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública.”“[…] uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações […] se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal […] será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público.”
Além disso, há uma observação sobre a natureza da inflação: “[…] a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas […] Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve.”
Há quem diga que a MMT (Teoria Monetária Moderna, em português) não é uma teoria, tampouco é moderna. Contudo, à luz desses pilares e da consideração sobre a natureza da inflação, os seguintes desdobramentos, por exemplo, se tornam possíveis:
Essencialmente, que o governo não possui restrição orçamentária;
Logo, medidas de austeridade fiscal ou de elevação da carga tributária seriam dispensáveis; Porque os serviços da dívida pública podem ser honrados através do endividamento a prazos maiores (rolagem) ou a taxa básica de juros pode ser reduzida à zero, aliviando o fardo fiscal; Ou seja, o governo, através do banco central, pode reduzir a taxa de juros de forma discricionária para, por exemplo, manipular o custo do capital, adquirir títulos de dívida privada ou reduzir o desemprego através de empreendimentos estatais;
Em última instância, um governo soberano pode financiar a dívida pública até mesmo através da emissão monetária;
Daí em diante a caixa de Pandora está aberta. A MMT confere ao Estado os poderes tão desejados pelo mais fanático heterodoxo intervencionista e, ao mesmo tempo, desperta o pavor da inflação no mais ferrenho dos ortodoxos. No entanto, a robustez teórica da MMT, isoladamente, pouco importa.
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Trata-se da narrativa econômica da moda nos Estados Unidos, disseminada através de economistas e políticos. Stephanie Kelton, conselheira econômica da campanha de Bernie Sanders, candidato derrotado nas primárias presidenciais do Partido Democrata em 2016, e Alexandra Ocasio-Cortez, parlamentar recém-eleita para a Câmara dos Representantes, têm contribuído ativamente para a disseminação do conceito.
Mas, não nos deixemos levar por uma mera narrativa, ainda que popular. Afinal, o título do artigo é “A crise da macroeconomia” justamente porque, segundo seu autor, as convenções anteriormente aceitas são insuficientes para a compreensão da realidade no “pós-crises”. Os limites e a eficácia da política monetária podem ser turvos, as fronteiras da política fiscal, igualmente nebulosas.
André Lara Resende não está sozinho ao reconhecer esse momento. Ricardo Reis, por exemplo, avalia as possibilidades da atuação fiscal do banco central no artigo “Can the Central Bank Alleviate Fiscal Burdens?”. Porém, antes de concluir que existem certos limites para fantasias econômicas, ele admite o momento atípico:
“Crises impulsionam a imaginação dos acadêmicos. A crise financeira dos Estados Unidos seguida pela crise do euro levaram à propostas originais sobre como estímulos fiscais podem ser entregues, como ativos seguros podem ser criados numa união monetária sem passivos conjuntos e como a regulação macroprudencial pode superar problemas no setor financeiro […] os balancetes dos quatro maiores bancos centrais parecem muito diferentes do eram 10 anos atrás […] Em ambos os lados do Atlântico, a dívida pública está no seu nível mais alto desde a Segunda Guerra Mundial.”
Num artigo recente, Olivier Blanchard argumenta que o momento atípico, na verdade, pode ser a nova normalidade. Convenções acerca da dívida pública, antes comumente aceitas, estão enfraquecidas num mundo com taxas de juros próximas a zero. De forma sintetizada, seus argumentos principais são:
A manutenção da taxa de juros americana abaixo da taxa de crescimento econômica não é exceção, mas regra. Portanto, a rolagem da dívida pública sem elevações na carga tributária é plausível. Em suma, a dívida pública pode não ter custos fiscais.
Mesmo desconsiderando custos fiscais, a dívida pode ter custos de bem-estar ao reduzir a acumulação de capital. Contudo, esses custos podem ser menores que aquilo tipicamente assumido.
Grosso modo, quanto menor o produto marginal do capital, menor o custo de bem-estar da dívida.
A relação entre expectativas do investidor e prêmio exigido pelo risco oriundo da dívida não possui implicações diretas para o nível adequado de endividamento.
O que há de comum nas considerações de Lara Resende, Reis e Blanchard é o reconhecimento de um momento atípico, em termos macroeconômicos. Todos eles admitem, grosso modo, que as crises mundiais dos anos 2000 foram um ponto de inflexão.
A partir delas, nossa compreensão da realidade, principalmente nos Estados Unidos, Japão, União Europeia e Reino Unido, pode ser limitada pelo arcabouço conceitual da macroeconomia ortodoxa. Logo, a discussão de uma narrativa específica, assim como é a MMT, é mera perda de tempo. O que está em jogo é o cânone macroeconômico. O conjunto padrão de modelos e regras tidos como genuínos e oficiais.
Antes do Plano Real, o Brasil não fazia parte desse cânone. Após o plano, com a inflação sepultada, o país passa a fazer parte dele e novos elementos são adicionados ao enredo: Novo Consenso Macroeconômico, tripé [macroeconômico], programas sociais e assim por diante.
Hoje, a aberração brasileira é a antes relegada questão fiscal, manifesta no problema previdenciário. Na última vez, André Lara Resende contribuiu para o acesso ao cânone, que, cada vez mais, não é o mesmo. Logo, a subdesenvolvida economia brasileira corre riscos reais de ficar presa a um arcabouço conceitual que nem sequer existe mais. O pior: não sabemos as consequências disso.
O abismo entre o Brasil e os países desenvolvidos pode ficar ainda maior, dessa vez e nesse contexto, por razões exógenas, ou eles próprios podem ruir em função de alguma lei implacável da economia. De qualquer forma, o tabuleiro está posto, as peças podem se mover por caminhos antes inacessíveis e Lara Resende reflete sobre o que acontecerá duas rodadas à frente. Observemos.
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