Sobre os ruídos do mundo que ignoramos, por distração ou indiferença

Abaixo do menino aflito já não ouço ninguém. Sei que há ali, no nono andar, um apartamento vazio, tão absolutamente vazio que não lhe restam nem paredes. Por semanas nos chegaram notícias clamorosas de sua destruição, com serras austeras e marretas violentas, o tipo de barulho conspícuo que não escapa a ninguém. Depois se deu uma longa mudez, a anunciar a chegada de novas vozes ao prédio. Sei que delas não ouvirei mais que cumprimentos breves, quando acontecer de nos cruzarmos no elevador, nas manhãs de pressa. Ou talvez, por um tempo, ouvirei em seus olhares um pedido de perdão pelo ligeiro incômodo, por tão forte terem feito o chão estremecer.

Do sétimo andar não me chegaram sequer os rumores de uma briga antiga, reavivada na última noite por uma propaganda de automóveis. O homem a viu e se comoveu com o encontro extemporâneo entre mãe e filha, apesar do tempo, apesar da morte, cada uma a dirigir seu veículo reluzente. A mulher a viu e se irritou com o cinismo da empresa, e com a insolência do capitalismo, que para vender o produto da vez é capaz até de ressuscitar uma grande artista e perverter seu legado para sempre. Irritou-se sobretudo com a comoção do marido, que há anos não se comove com ela. Foi um caso banal, mas não é impossível que tenha rompido o casal em definitivo. Ela não voltou a se erguer da cama, mas já arruma as malas e o destino em sua mente.

Também não ouvi a senhora do terceiro, senhora solitária que assistia ao jornal nesse mesmo momento, e ali descobria a morte de um dramaturgo cujo nome ressoava de algum ponto extraviado nas décadas. O homem morria, já em sua velhice, não de fraqueza ou falência, mas consumido por fim pelo fogo que o consumira a vida inteira, frenético e íntimo, cálido e incontível. É fato que mal o conhecia, mas ainda assim a senhora se deixou tomar pelas palavras de exaltação que tantos lhe rendiam, e por um instante sofreu como se perdesse um ídolo, ou um amigo. Não ouvi a lágrima a se condensar em sua pálpebra e logo ser absorvida, lágrima acanhada demais para escorrer por sua bochecha.

No novo elevador do meu prédio, há pouco foi implantado um ruído de segurança contra qualquer corpo que intercepte a porta ou passe pela soleira, um fino tinido a ferir os tímpanos, suponho que inaudível para muitos. A princípio sofri com esse acréscimo de estridência numa existência já tomada por clamores diversos. Depois me conformei e resolvi entendê-lo como um alarme para o bulício dos tempos, a me avisar diariamente o que não posso ignorar, o que não devo esquecer. Que há um ruído a dividir as gentes, o ruído da vida e da morte, da construção e da ruína, do choro e do sossego, da fina comoção e da indiferença bruta.

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