Há dez anos, a complexidade tomou as ruas. Por que a simplificamos agora?

Voltar a observar as imagens desses anos convulsivos pode ser um bom começo para entendê-los por um novo prisma. Sugiro ao leitor um passeio pelas páginas de "A verdade vos libertará", livro da fotógrafa Gabriela Biló, cujas lentes captaram de maneira singular a fúria e a dor da última década. O passeio se inicia pelas jornadas, com seu fogo e seu sangue, sua revolta duramente reprimida pela truculência policial. Inicia-se, assim, por algo que em nada se confunde com as passeatas ordeiras das páginas seguintes — passeatas que escondiam sob a aparente ordem uma face muito mais sinistra. Só um ano mais tarde a multidão nas ruas se faz verde e amarela; só dois anos mais tarde, e não ali nas jornadas, pinta-se o rosto de golpista, o mesmo rosto que anos depois assumirá as feições bolsonaristas.

Não é preciso muito esforço para ver as grandes diferenças ideológicas e demográficas entre os protestos espontâneos de junho e a massa guiada, mais tarde, pelos líderes da extrema direita ascendente — é o que aponta Pablo Ortellado. Trata-se de uma virada na própria concepção de ativismo, uma virada que se mostra tanto nas ruas quanto nas redes. Passa-se de um tempo de luta imediata por direitos, ainda que de maneira desorbitada e confusa, ainda que equivocada em alguns aspectos, a um tempo de combate aos inimigos assumidos, ao estranho inimigo que por vezes habita a mesma rua, a mesma mesa, a mesma família. Do choque entre militância e polícia passa-se, então, ao choque entre vizinhos, ao choque entre irmãos.

Nessa mesma distinção insiste Marcos Nobre, trazendo alguns argumentos decisivos. Faz uma leitura precisa da conjuntura nacional e dessa evidente distorção no debate público brasileiro, mas vai além, situando a questão numa perspectiva mundial. Para ele, e como todos sabíamos à época e parecemos esquecer, "junho é parte do ciclo global de revoltas democráticas de 2011 a 2013", um ciclo de evidente caráter emancipatório e progressista que inclui a Primavera Árabe, o movimento Occupy Wall Street e os protestos anticapitalistas na Espanha, na Grécia, na Turquia. Em cada um desses países o crescimento da extrema direita e o recrudescimento do autoritarismo foram problemas sérios nos tempos seguintes, e ainda assim, ressalta Nobre, "não se produziu em outros lugares uma narrativa dominante de demonização das revoltas".

Só aqui a esquerda se tornou contrária às ruas, só aqui assumiu essa estranha forma de prudência que tanto se confunde com o conservadorismo, com o desejo de manutenção do status quo. É o engano histórico, tão repetido por todo lado, o que produz essa deformação política, e parte da razão por que sucumbimos à paralisia, e por que todo horizonte futuro acaba interrompido. Demonizar as jornadas de junho e querer esquecê-las é deixar de compreendê-las, é recalcá-las e assim obrigá-las a retornar como sintoma. É sobretudo simplificar tudo aquilo que elas tinham de complexo e indefinível, e assim perder, por cautela, por medo, o resquício de utopia que talvez ainda se vislumbrasse ali.

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